A Compós entrevistou Marcel Hartmann Prestes, jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com período sanduíche no Canadá – na Université Laval (Québec) e Université du Québec à Montréal (Montréal), e especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS e em Sociologia, História e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Trabalhou como repórter em Porto Alegre e São Paulo e, atualmente, é consultor internacional de comunicação para a sede da Organização Pan-Americana da Saúde/ Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) em Washington, D.C. Marcel é autor da dissertação vencedora do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2025, intitulada “Dilemas éticos de jornalistas brasileiros no jornalismo metrificado”.
Compós: Vamos começar com o que representou para você, na sua trajetória, ser o vencedor do Prêmio Compós na categoria dissertação?
Marcel Hartmann Prestes: Eu acho que representa um reconhecimento muito bonito. Tanto a pesquisa que eu conduzi e a orientação feita pela minha professora, a Thaís Furtado, quanto um reconhecimento da Compós à área de estudo a qual se filia a minha pesquisa, que é a de ética jornalística, jornalismo digital e, sobretudo, os avanços da tecnologia no jornalismo. Obviamente, eu não fiz uma pesquisa de mestrado esperando um prêmio e eu confesso que fiquei muito surpreso quando me vi entre os finalistas. A gente não esperava. O Prêmio Compós é simplesmente o mais prestigioso da área de Comunicação do Brasil, então achei surreal, primeiro, eu ter sido finalista e, depois, vencedor. Eu acho que é importante lembrar que muitas vezes o mestrado é uma atividade bastante demandante, emocionalmente. Eu fiz o mestrado trabalhando, então foi ainda mais exigente, para mim, conseguir conciliar isso com todos os meus horários. Eu fiquei muito feliz com a sensação de que esse esforço valeu a pena e que as discussões que a dissertação propôs para a academia são válidas, importantes e que tem o potencial de provocar outras discussões.
Compós: Sobre a sua pesquisa, você relaciona a perspectiva da ética jornalística com o contexto da metrificação no jornalismo. Como surgiu esse tema de pesquisa? Ele vem da sua atuação profissional ou de outro lugar?
Marcel: Surgiu por conta de questionamentos meus. Quando comecei o meu mestrado, eu trabalhava como repórter em uma grande redação e eu via a relevância que as métricas tinham na produção e edição jornalística, o quanto elas adquiriam a predominância nas discussões de pauta. Por vezes, havia uma disputa de tempo e energia entre jornalistas para as pautas, as reportagens e as notícias que eram de grande interesse público, mas menor potencial de audiência, concorrendo com pautas que eram de menor interesse público, mas maior potencial de audiência. Eu via, muitas vezes, uma certa pressão para equilibrar ambos os interesses e discussões que eram importantes ficavam de lado ou eram reduzidas porque gerariam menos interesse da audiência nessa nova configuração da produção jornalística. Eu sempre me interessei pela questão da ética jornalística, desde a época da faculdade. E lembro que, por conta própria, comecei a ler livros dessa temática para ver se eu conseguia achar uma resposta e eu não achei. Eu discutia isso com colegas de trabalho e eu pensava “eu preciso estudar isso de fato para ver se tenho uma resposta e, talvez, a resposta seja eu perguntar para outras pessoas o que elas acham disso”. Então veio, de certa forma, de uma inquietação pessoal com uma curiosidade intelectual minha. “Já que não tenho essa resposta, então de repente eu deveria estudar”. E é melhor estudar isso fazendo um mestrado, tendo uma orientação, em vez de sozinho em casa lendo livros de ética jornalística. Foi uma discussão muito rica porque, nessas entrevistas que conduzi, eu tentei buscar pessoas de diferentes faixas etárias, regiões do Brasil, cargos justamente para ter uma visão diferente, a partir de uma perspetiva demográfica. Eu consegui ver que, apesar dessas diferenças e desses marcadores, havia uma espécie de confluência de opiniões e de avaliações sobre esse novo cenário. Foi interessante porque eu comecei a pesquisa com muitas perguntas e, buscando respostas, eu saí com mais perguntas ainda. Eu acho que talvez seja um indicador de um bom mestrado terminar com mais perguntas do que a gente tinha antes de começar.
Compós: Você articula algumas correntes teóricas sobre a ética, duas mais clássicas (a deontologia kantiana e o consequencialismo) e duas mais recentes (a ética do cuidado e a das virtudes). Como foi para você fazer essa articulação? E o que você considera os principais achados desse esforço teórico?
Marcel: Quando eu comecei o mestrado, a ideia era só focar nas correntes consequencialista e deontológica porque foram as que eu aprendi na época da graduação e que são as mais consolidadas. Para a minha banca de qualificação, eu chamei a professora de ética jornalística da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ela sugeriu expandir e agregar essas outras duas correntes éticas, a das virtudes e a do cuidado. Ela falou “olha, são correntes que estão sendo, agora, muito discutidas na área da ética jornalística e elas podem enriquecer o teu trabalho”. Então foi um esforço que fiz para conseguir me adequar e agreguei duas teorias sobre as quais eu não tinha nenhum conhecimento. Eu fiz uma disciplina de ética no Programa de Pós-Graduação em Filosofia para conseguir me aprofundar na discussão… Eu sempre tive o receio de fazer mergulhos superficiais, sou bastante exigente com o meu trabalho e não queria fazer uma pesquisa para pincelar qualquer coisa, queria realmente falar com propriedade. Para que uma pessoa dos estudos de ética pudesse ler o meu trabalho e pudesse dizer “olha, esse pesquisador se embasou bem”. Então eu fiz essa disciplina de filosofia que foi muito importante e fiz dois mestrados sanduíche, uma coisa que ninguém faz, porque queria muito tirar um tempo para me dedicar à pesquisa. Eu queria viajar, queria morar fora. Então eu fiz um mestrado sanduíche primeiro na Universidade Laval, na cidade de Quebec, no Canadá francês. E depois eu fiz na Universidade do Quebec, em Montreal, também no Canadá. Com isso também consegui entrar em contato com outras teorias, outros autores e ter perspectivas tanto do mundo francês quanto do mundo de língua inglesa. Isso enriqueceu a minha pesquisa também porque eu tive professores e uma supervisora no Canadá, que é muito boa nos estudos de jornalismo digital, que me provocaram inflexões e me indicaram bibliografias que conseguiram aprofundar essa discussão… Tu me perguntas sobre quais foram os principais achados e eu acho que foi conseguir ver que eu tinha uma hipótese no início de que, talvez, esse novo cenário de métricas de audiência norteando o jornalismo fosse uma questão propriamente antiética e que jornalistas estivessem se desvirtuando do seu princípio… Mas, ao mergulhar na teoria e entrevistar jornalistas, eu vi que, na verdade, existe um fundo interessante na defesa das métricas no jornalismo, que é a importância de se conectar com as audiências, com as comunidades para as quais os jornalistas produzem jornalismo. E é claro que existem limites para isso, né? Não pode ser a busca da audiência incessante, mas uma preocupação com o interesse da audiência é saudável porque isso norteia os jornalistas a produzirem um conteúdo que seja útil à sociedade… E foram outras perspectivas éticas que conseguiram trazer esse embasamento teórico. Fazer esse mergulho na ética, então, foi importante para eu conseguir tencionar as declarações dos e das jornalistas. Eu tinha receio de só fazer uma dissertação declaratória com aspas dos entrevistados, sem que eu pudesse ir a fundo. O meu objetivo de trazer essas correntes éticas foi de dizer “olha, eles não estão a par dessas correntes éticas, mas eles estão acionando conceitos que são importantes e têm sentido, e são conceitos éticos que têm valor por si só; e no esforço de conseguir se adaptar à nova realidade, jornalistas tensionam as suas relações de trabalho também se adequando ao contexto conforme a ética profissional e impondo limites baseados na ética”. Então acho que o principal achado foi que a ética não é uma desculpa que os jornalistas usam para aceitar o novo cenário. É o que motiva jornalistas a imporem limites em relação ao que eles não vão fazer. Por isso que a ética é muito importante e por isso que o Prêmio também é, porque valoriza que a ética profissional deve ser debatida e discutida nas universidades, ela é o que dá munição aos jornalistas ao defenderem valores importantes do jornalismo.
Compós: A próxima pergunta é sobre metodologia. A combinação de entrevista com análise de discurso não é rara em nosso campo. Mas para você, quais foram os principais desafios ao aliar esses métodos, ainda mais ao pensar que a AD é também uma teoria?
Marcel: Na parte de entrevistas eu não tive grandes desafios porque, como eu trabalhei muitos anos como repórter, eu estou muito acostumado a conduzir entrevistas, a achar entrevistados e a trabalhar para que as pessoas se sintam à vontade ao falar comigo. Na parte de análise do discurso eu acho que, primeiro, foi me apropriar da teoria que eu tinha usado no meu TCC (agora faz 15 anos que eu acabei minha graduação). Para isso, eu passei pela mesma preocupação de não fazer uma discussão superficial. Eu fui aluno de uma disciplina no Programa de Pós-Graduação da Letras da UFRGS, então, durante todo um semestre, eu tinha aulas com um professor especialista em análise do discurso para eu não utilizar só como uma metodologia, que é uma crítica da área da Letras à Comunicação… Que a gente supostamente só usa como uma mera metodologia em vez de, de fato, se apropriar da discussão teórica, que é muito baseada numa análise marxista da sociedade. Essa disciplina que eu fiz foi muito importante para conseguir utilizá-la de uma forma mais profunda e conseguir entender o que havia de comum e o que havia de diferente nos relatos dos entrevistados. Eu sei que há muitas críticas à análise do discurso porque ela não é, por exemplo, uma análise de conteúdo que vai seguir parâmetros específicos, mas ela tem seus méritos que são, sobretudo, conseguir fazer um mergulho muito profundo nos relatos. Então acho que o meu desafio, e foi muito bom a presença da minha orientadora, que fez um doutorado em análise do discurso e ela me ajudou bastante, foi conseguir utilizá-la de uma forma científica. Ou seja, não ter o receio de virar achismo e de conseguir ver “não, ela é uma teoria com uma metodologia também, tem que seguir os passos para ver o que tem… Vamos mapear o que está sendo comum aqui, o que está sendo diferente, quais são as confluências, para onde apontam esses discursos, essas palavras que se usam de forma repetida, o que talvez elas queiram dizer”. Então foi me apropriar da teoria e conseguir implementá-la para conseguir encontrar os sentidos que havia na pesquisa. Tentei fazer isso do meu melhor jeito e acho que houve resultados interessantes e foi um aprendizado.
Compós: Você já falou um pouco, mas a minha pergunta é: o que foi mais surpreendente entre os resultados que encontrou, mas que não esperava quando começou sua pesquisa?
Marcel: Para mim, o resultado mais surpreendente foi a descoberta de que não é que jornalistas utilizem a ética jornalística como uma estratégia discursiva para justificar os seus atos, que colocam as métricas como um norte nas redações. Na verdade, os jornalistas usam a ética para delimitar fronteiras que eles não vão cruzar. Eu fiquei de certa forma orgulhoso dos colegas jornalistas. Por ver que os valores éticos estão em negociação no jornalismo hoje, porém, existem valores que são inegociáveis e que os jornalistas não vão abraçá-los enquanto estiverem atuando como jornalistas, repórteres, editores… Então acho que a grande descoberta foi uma espécie de renovação da importância da ética jornalística. O que mais me impressionou nessa pesquisa foi ver que jornalistas têm muito aguçado “o que é certo” e “o que é errado”, o que eles devem fazer e o que não devem e como é a atuação de jornalista modelo ou não. Jornalistas vão negociar nas beiradas o que vão abdicar ou não porque precisam manter o próprio emprego. E as empresas de comunicação, hoje, exigem de todos uma preocupação com as métricas. Jornalistas negociam isso porque querem seguir trabalhando como repórteres e como editores… Só que, quando sentem que estão cruzando uma fronteira, eles vão dizer “não”! E o que é esse sentimento? Ele é lastreado na ética jornalística. Então esse foi o meu grande achado. A ética está mais importante do que nunca nesse cenário, ela não está enfraquecendo. Não é que a ética esteja perdendo valor no momento de 2025 do jornalismo… Ela está ganhando valor porque o jornalismo está sendo confrontado diante de uma espécie de “marketização do jornalismo”, então, são dois campos, o marketing e o jornalismo, que estão cada vez mais se sobrepondo. Jornalistas estão vendo isso, não estão satisfeitos, por vezes aceitam esse encontro porque precisam manter o seu emprego, mas quando sentem que existe uma sobreposição que desvirtua o jornalismo eles vão dizer “não, dessa não passo”. A ética jornalística se torna uma das últimas torres de defesa para conter o avanço do marketing e essas torres são fundamentais para o valor do jornalismo, para a credibilidade e para que essa instituição siga relevante e importante na vida das pessoas.
Compós: Sobre o seu percurso no mestrado, e na pós até aqui, o que você gostaria de compartilhar com quem vai ler esta entrevista? Como a pós mudou a sua vida?
Marcel: A pós mudou radicalmente a minha vida e eu digo isso não da boca para fora. Ela factualmente mudou a minha vida. Cursar um mestrado em Comunicação me permitiu, primeiramente, morar fora. Me permitiu conseguir fazer mestrado sanduíche e fazer uma transição de carreira que mudou radicalmente minha vida. Eu trabalhava como repórter, como eu mencionei, de jornal e de rádio numa grande redação e eu nutria o desejo de morar e, talvez, ter uma carreira fora. Quando entrei no mestrado, eu viajei para o Canadá no terceiro semestre, então no segundo ano. E quando eu estava lá, eu identifiquei que poderia me candidatar a vagas no exterior e um amigo me enviou um edital do programa global de estágios de uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU). Eu descobri que na ONU existem programas de estágio para estudantes de mestrado e doutorado, para pessoas que não estão na graduação, são um pouco mais velhas, têm experiência e buscam uma carreira internacional. Eu me candidatei e consegui um estágio, trabalhei na agência da ONU para HIV e AIDS, a UNAIDS. No meu quarto semestre do mestrado, trabalhei remoto de Montreal para Genebra enquanto finalizava o segundo mestrado sanduíche. Depois disso eu consegui uma outra vaga, trabalhei por um ano e aí fui para a Organização Mundial da Saúde (OMS), morar em Washington, fui promovido e hoje eu trabalho como consultor internacional de comunicação no escritório da OMS para as Américas. É um trabalho 100% remoto, eu trabalho hoje da Europa, estava em Paris antes, agora estou na Itália, em Bérgamo… Então a pós mudou a minha vida, me permitiu fazer uma transição de carreira para um cargo e uma vida que eu nunca imaginaria. Hoje eu trabalho remoto, tenho flexibilidade para estar no Brasil, para saber da família, dos amigos ou para viajar. E foi uma grande mudança de classe social, de cenário, fiz novos amigos e isso foi algo que o mestrado me abriu… E o Prêmio da Compós está ali, bonito, quando eu faço entrevistas agora e quando eu fiz entrevistas para a ONU. Ele demonstra que, além de ter experiência de trabalho como jornalista, eu também tenho experiência como pesquisador e isso é muito valorizado na ONU. Então, resumindo, o mestrado melhorou em 1000% a minha vida, de uma forma que eu nunca imaginaria e eu, hoje, tenho uma vida dos sonhos que eu jamais teria… Porque em 2022 eu comecei a fazer um mestrado em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Compós: Muito obrigada pela sua entrevista, seu tempo e disponibilidade em estar conosco, Marcel. Agora eu deixo o espaço aberto para você.
Marcel: Eu queria agradecer à Compós porque foi um prêmio muito bonito, que eu divido com a minha orientadora, a Thaís Furtado. Eu tenho muita consciência de que o trabalho de uma pesquisa é feito muito pelo pesquisador, mas também com o orientador ou orientadora… Quando essa pessoa está presente e a minha orientadora sempre esteve presente. Eu ressalto isso sempre em minhas manifestações porque eu sei que há pessoas que têm orientadores ausentes. E a minha orientadora sempre foi muito presente, de eu poder falar, enviar mensagens no WhatsApp e ela responder por áudio na hora ou responder quando ela podia… Ela sempre estava comigo fazendo reflexões, foi uma pessoa muito importante no meu mestrado, de quem eu viria a ser amigo. Ela virou minha amiga e eu virei amigo dela. E eu acho que eu tive muita sorte. O mestrado, eu sempre digo, mudou muito a minha vida e eu recomendo a todo mundo que faça um mestrado. Sei que o mestrado afeta as pessoas de formas diferentes, mas a gente sempre sai melhor dele, a gente sai com uma visão de mundo mais aberta, com um senso crítico mais apurado e sai com mais perguntas do que quando a gente entra. E eu acho que isso é um sinal de que a gente tem mais conhecimento e se dá conta de que ainda tem muito mais conhecimento para adquirir.
Você pode ler a dissertação vencedora na íntegra, acessando este link.