A Compós entrevistou Raimundo Miguel Benjamim – Ray Baniwa, comunicador indígena e pesquisador do povo Baniwa, do Rio Içana, São Gabriel da Cachoeira (AM). É mestre e doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), investigando o uso e a apropriação das tecnologias de comunicação, e os impactos da internet nas comunidades indígenas do Rio Negro. Também é co-fundador da Rede Wayuri e membro do Instituto da Hora (IDH). Ray é autor da dissertação “Comunicar para resistir e existir: de rádio cipó à Rede de Radiofonia Indígena no Rio Negro – Amazonas”, menção honrosa da categoria no Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2025.
Compós: O que significou receber a menção honrosa do Prêmio Compós 2025 para você? Considerando a sua vida pessoal, acadêmica e profissional?
Ray Baniwa: Receber a menção honrosa do Prêmio Compós Eduardo Peñuela, durante o 34º Encontro Anual, foi um momento muito simbólico e feliz para mim. Simbólico dada a importância da organização, que é uma das mais importantes na área da Pós-Graduação em Comunicação no Brasil, e feliz por ter minha dissertação reconhecida nesse espaço. O reconhecimento tem muitos significados para mim. Como estudante e pesquisador indígena, é a importância da presença de estudantes na academia, especialmente na pós-graduação, para trazer ciências e experiências dos povos indígenas, produzir e circular esses conhecimentos. No campo pessoal, significou reconhecimento de uma trajetória acadêmica marcada pelas dificuldades e enfrentamento de desafios, não só minha, mas do coletivo de comunicação que faço parte, a Rede Wayuri, e de um território, o Rio Negro, e seus povos. A menção honrosa do Prêmio eu compartilho com amigos, colegas comunicadores indígenas e lideranças nas minhas redes sociais, da qual eles fazem parte da conquista. Chegou como uma motivação a mais para seguir adiante no doutorado, que voltei esse ano, para dar início no mesmo Programa da UFRJ.
Compós: E como surgiu o seu interesse pelo tema da comunicação indígena e das tecnologias como ferramentas de luta?
Ray: A escola Baniwa e Koripako Pamáali, um projeto de educação escolar do meu povo, me permitiu e possibilitou os primeiros contatos com as tecnologias, como a internet, o computador, ainda que de forma precária devido às condições na época, em meados de 2004. Esse contato me levou a conectar com outras experiências e pessoas que trabalham com tecnologias, incluindo parentes indígenas, em espaços de debates sobre as tecnologias de comunicação e internet – como o Fórum de Internet no Brasil. Ali, percebi como elas poderiam ampliar nossas vozes e fortalecer nossas lutas. A partir de 2008, junto com grupos de alunos, criamos o blog da escola e meu pessoal, no qual escrevia sobre os principais acontecimentos sociais e políticos no território Baniwa. Essa experiência e nossas possibilidades de formação me levaram a ser comunicador da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), em 2013. Dentro dessa organização, um dos projetos que se tornou conhecido e reconhecido internacionalmente foi a Rede Wayuri (Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro), criada em 2017. Com a comunicação dessa organização representativa dos povos indígenas que vivem no Rio Negro, passei a vivenciar isso diariamente, vivi e continuo vivendo de perto o impacto político e social da comunicação e o uso das tecnologias de comunicação nesse território. Esse uso ficou evidenciado, especialmente, durante a pandemia, quando a rádio e a internet foram essenciais para salvar vidas, tanto para circular informações de enfrentamento e cuidado, como para enfrentar a desinformação. Hoje, nós povos indígenas, continuamos vivendo em contexto de ataques constantes aos nossos direitos constitucionais. Nos apropriarmos das novas tecnologias e estar presente no ambiente digital é demarcar nossos territórios e continuar resistindo para existir.
Compós: Sobre o conjunto teórico que baseia sua investigação, como foi articular os conceitos de etnocomunicação, etnomídia, comunicação ancestral indígena e comunicação em rede na sua pesquisa?
Ray: Articular esses conceitos exigiu reconhecer que a comunicação indígena é muito mais ampla do que apenas meios técnicos. No caso do Rio Negro, região onde desenvolvi meu trabalho, a articulação desses conceitos leva ao que chamei de um ecossistema comunicacional, pois inclui a comunicação ancestral presente nos grafismos, nas cantos, nos rituais, nas narrativas orais e nas relações com o território e os seres não humanos. E depois, vem a etnocomunicação e a etnomídia, conceitos que ajudam a compreender como povos indígenas produzem e circulam conhecimento e informação no território, disputando narrativas e fortalecendo identidades. E por último, a comunicação em rede, na qual busquei compreender e analisar o uso das tecnologias digitais e das novas formas de comunicação que os povos indígenas passaram a usar no contexto contemporâneo. Na minha dissertação, procurei mostrar que essas dimensões se entrelaçam. As redes digitais só fazem sentido quando conectadas à nossa forma ancestral de comunicar; e as práticas de resistência nas mídias indígenas derivam dessa sabedoria coletiva.
Compós: Como foi o processo de coleta de dados e o resgate histórico da comunicação indígena no Rio Negro? Quais desafios apareceram nesse processo?
Ray: A coleta de dados foi um processo de escuta e de memória. Muitas das histórias sobre comunicação no movimento indígena do Rio Negro – especialmente as das décadas de 1980, 1990 e início dos anos 2000 – não estão documentadas, são raros os registros documentais. Elas vivem na lembrança das lideranças, nos relatos dos operadores de rádio, nas experiências de comunicadores da FOIRN e nas memórias de quem participou da construção das primeiras iniciativas de projetos de comunicação ou da introdução das novas tecnologias na região. Durante a realização do meu trabalho, destaco alguns desafios que enfrentei, como a falta de registros formais, a história da comunicação indígena no Rio Negro e Brasil ainda ser pouco estudada, e a própria extensão territorial… Acessar algumas pessoas e comunidades demandou articulação, logística e tempo, e algumas pessoas consideradas importantes para o trabalho não foram acessadas por mim. Por isso, novos e mais estudos sobre o tema são de grande importância para a região do Rio Negro e outros territórios indígenas no Brasil.
Compós: Entre os resultados, o que você considera mais relevante ou surpreendente e que merece ser amplamente compartilhado, em especial com nossos leitores?
Ray: Há vários pontos que considero fundamentais no trabalho, mas destacaria três. O primeiro é a comunicação indígena como ecossistema, especialmente como ela acontece na região do Rio Negro ou em territórios indígenas. Não existe um modelo de comunicação indígena, sempre há uma coexistência de formas ancestrais, comunitárias, radiofônicas e digitais de comunicação. Ela é feita e circulada de acordo com o contexto do território, da memória e das cosmopercepções dos povos indígenas que vivem ali. O segundo é sobre o uso e a apropriação das novas tecnologias pelos povos indígenas. Nesse ponto, fiz uma breve trajetória sobre esse uso das tecnologias no Brasil e no Rio Negro, por ser um dos objetos do estudo, apropriado por eles – e a radiofonia se destacou. Muitas mobilizações e lutas pelo reconhecimento dos territórios indígenas tiveram essa tecnologia como um dos principais meios. Mesmo com o avanço do uso da internet nas comunidades indígenas na região, a radiofonia indígena ainda é vital para salvar vidas, informar comunidades, organizar mobilizações e proteger o território. Durante a pandemia, isso ficou evidente, se tornou uma rede de trocas de conhecimentos, medicina tradicional entre as comunidades. O terceiro destaque que faço é sobre o protagonismo: quem e como é feita a comunicação indígena no contexto contemporâneo. Hoje, ela é considerada pelas organizações, lideranças e comunicadores indígenas como estratégica para o fortalecimento da luta pelos direitos e territórios. Muitos coletivos e redes de comunicação indígena no Brasil são lideradas por jovens e mulheres indígenas.
Compós: E o que você gostaria de dizer sobre sua trajetória na pós-graduação?
Ray: Minha trajetória na pós-graduação é marcada por desafios, conquistas e construção coletiva. Ainda que eu esteja sozinho no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ), carrego comigo minha ancestralidade que me conecta com meu território, meus ancestrais, comunicadores indígenas e a luta das lideranças indígenas que são minha base e inspiração.
Compós: Obrigada pela sua participação, Ray. Agora você tem o espaço aberto, fique à vontade.
Ray: Quero deixar meu agradecimento aos comunicadores e lideranças indígenas do Rio Negro. A meus professores no mestrado, em especial à minha orientadora, Prof.ª Ivana Bentes, que fez parte da construção do meu trabalho, e à banca de qualificação e de defesa. Também quero reconhecer a importância do Prêmio Compós Eduardo Peñuela para a valorização e incentivo à produção acadêmica, e a direção da Compós, por um espaço tão significativo para a pesquisa e estudos em Comunicação no Brasil.
Você pode ler a dissertação vencedora na íntegra, acessando este link.