A Compós entrevistou Alexandre Souza da Silva, doutorando e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na linha de pesquisa Cultura da Imagem e do Som. É graduado na área de Produção em Comunicação e Cultura pela UFBA, 2015, e formado em Publicidade e Propaganda pela União Metropolitana de Educação e Cultura (UNIME), em 2012. Alexandre possui experiência na área de Comunicação, com ênfase em Comunicação e Cultura, tendo atuado como pesquisador no Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia). Atualmente, é pesquisador no Centro de Pesquisa em Estudos Culturais e Transformações na Comunicação (TRACC) e do Grupo de Pesquisa Cultura Audiovisual, Historicidades e Sensibilidades (CHAOS).
Com a sua dissertação, intitulada “Wakanda Forever: reivindicações de afrofuturos em torno do Pantera Negra Chadwick Boseman”, Alexandre recebeu a menção honrosa do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023. Alexandre foi orientado pela Prof.ª Dr.ª Juliana Freire Gutmann.
Compós: Vamos começar com a pergunta que estamos fazendo para todos os entrevistados vencedores: o que significou para você receber essa menção honrosa pela sua dissertação? É um marco receber o Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023?
Alexandre: A menção honrosa foi muito significante. Muito pelo trajeto, a trajetória que essa dissertação teve e ela tem ainda, né? Ela ganhou vida após eu apresentá-la. Ela passou na seleção interna da pós-graduação e aí foi pra seleção externa, isso marcou demais. Porque mostra que o meu caminho de pesquisa é validado, que as pessoas têm um interesse, mostra que toda a minha trajetória, os autores que eu trabalho na minha dissertação, têm um propósito. O que eu escrevi, as perspectivas, as ideias que eu trouxe, os conceitos, eles têm um entendimento, principalmente na área da Comunicação, e isso foi muito importante para mim enquanto pesquisador. Eu estou no primeiro semestre do doutorado e quando a gente defende a nossa dissertação fica aquele vácuo entre o mestrado e o doutorado. A gente não sabe se continua na vida acadêmica, se vai para o mercado de trabalho, vai buscar um emprego mais formal ou não, e ter visto que a minha dissertação teve essa premiação, essa menção honrosa, foi uma validação: “Não, dá para continuar na vida acadêmica, os meus anseios, enquanto pesquisador, têm reverberação”. E essa minha dissertação, por ter sido escrita durante a pandemia, tornou-se a minha válvula de escape, né? A minha fuga, o meu modo de dizer para o mundo que eu estou vivo, que eu existia, mesmo a pandemia ocorrendo… Eu estava buscando ali uma forma de me reafirmar perante o mundo, então essa escrita, enquanto um pesquisador negro na área acadêmica, foi muito legal, foi um “Estou tendo um reconhecimento do campo da área acadêmica, não somente da Compós, da área da Comunicação”. Foi muito gratificante.
Compós: Você comentou um pouco sobre o seu caminho acadêmico, que foi compartilhado por muitos pesquisadores desde 2020… Conta pra gente como foi esse processo de construir uma dissertação premiada, com um tema tão potente dentro do mundo do entretenimento, em um período tão delicado como foi a pandemia?
Alexandre: Foi um processo de descoberta, né? No primeiro ano vem tudo certinho e tal e aí eu me lembro claramente, no segundo ano, que é o último ano derradeiro do mestrado… Só tive uma aula e na semana seguinte eclodiu a pandemia e aí eu fiquei “Meu Deus, eu vou ter que escrever uma dissertação e de forma remota”. Todas as minhas orientações, as minhas reuniões, foram por esse processo aqui, por meio de telas. Isso foi me marcando demais: “Tô escrevendo uma dissertação sem estar em contato físico, além do mesmo espaço com a minha orientadora, Juliana Gutmann. Vai ser uma dissertação atípica…”. E além do mais, eu trabalho o afrofuturismo na questão de futuros negros, na questão de lidar com outras temporalidades… E havendo um fenômeno atravessando essa questão do presente e o futuro se tornando nublado pela pandemia. “E o agora? E o amanhã como é que vai ser?”. A gente tem pandemia, não tem vacina, a gente não sabe qual vai ser a constituição da sociedade no dia de amanhã. Enquanto eu estava ali escrevendo sobre futuros negros, a noção de tempo e espaço estava se diluindo e isso foi marcante demais: “Poxa, isso aqui que eu tô escrevendo tem uma potência e tem, acima de tudo, uma ligação com a realidade”. E a questão de quebrar estigmas também, com relação à área acadêmica, se tem muito estigma de que o pesquisador pesquisa coisas que não dialogam com o restante das pessoas. E não dialogam com ele enquanto pessoa. Ele tem que se manter afastado do objeto de pesquisa e quanto mais afastado é melhor pra ele ver o fenômeno. Na realidade, a escrita da minha dissertação foi totalmente o oposto. Foi eu me escrevendo, eu me descobrindo enquanto um pesquisador negro, e vendo essa possibilidade de articular autores negros com relação ao afrofuturismo, ao Pantera Negra, à cultura pop… É literalmente dissertar sobre isso da melhor forma possível. E eu sempre busquei escrever da maneira que uma pessoa que não é da área da Comunicação, que não é acadêmica, pudesse ler isso e entender. E ela ter um pensamento de se sentir atraída. Por isso, um dos meus maiores interesses em trabalhar a questão de produtos da cultura pop é justamente isso, de pegar produções que atravessam o nosso dia a dia. Filmes, séries, novelas, videoclipes, entre outros materiais audiovisuais que fazem parte do cotidiano das pessoas. E através disso, puxar toda uma teia de articulações, de conceitos e problematizar e perceber que esse produto não existe separado do tempo e do espaço, ele tem um propósito, tem um porquê, tem um conjunto de narrativas, de perspectivas. E o Pantera Negra se potencializa muito nisso, ao trabalhar a representatividade negra na cultura pop, mas não é uma representatividade vazia, que é o caso de ter somente um personagem negro numa narrativa e pronto. É um filme que traz a hegemonia dos personagens negros, a maioria dos personagens negros. Então isso já mexe com esse eixo hegemônico. E a partir disso, problematizar mais essa questão de “Por que não existem outros filmes? Por que somente em 2018 fomos ter um filme com um super-herói negro?”. Esse mundo dos super-heróis se relaciona demais com a questão da infância, né? E como é que fica essa parte das crianças negras, garotas e garotos negros se reconhecerem nesses produtos, né? Foram lacunas que eu fui percebendo e que dissertar sobre isso daria um entendimento muito potente. Transformar isso, trazer isso para a área acadêmica, mas não se prender a isso. E buscando levar essa escrita para o maior número de pessoas e publicizar isso.
Compós: A sua pesquisa fala sobre as performances afrofuturistas, sobre negritude na cultura pop a partir da morte do Chadwick Boseman, que interpretou o Pantera Negra. Eu queria voltar só um pouco no tempo, quando o filme foi lançado, pois gerou uma grande comoção justamente por ser o primeiro super-herói negro depois de muito tempo. Como surgiu o seu tema de pesquisa? Quanto da sua história pessoal, enquanto homem negro que não pôde ter essa referência na infância, por exemplo, te moveu para a escolha desse tema?
Alexandre: Eu fui assistir o filme Pantera Negra em fevereiro de 2018 e eu saí do cinema com a certeza: “Eu tenho um objeto de pesquisa aqui”. Eu escrevi meu projeto para fazer o mestrado e era ainda muito seminal. Era um comparativo entre o Pantera Negra e a série Raio Negro, dois super-heróis negros, um da Marvel, outro da DC. E aí o tempo foi passando e eu me centrei no Pantera Negra, muito nessa vontade de me perceber ali, enquanto um homem negro consumidor de cultura pop… Também perceber essa constituição dos protagonistas das narrativas, sejam elas em formato de videogames, de novelas, de videoclipes… Sempre me chamou muita atenção como é que corpos negros estavam sempre relacionados ao não-protagonismo, ao coadjuvante, ao personagem que morre primeiro na narrativa de um filme de terror, por exemplo. E perceber no Pantera Negra que a maioria dos personagens é negra, atrizes e atores negros. E, acima de tudo, a noção de Wakanda, esse território africano imaginativo, mas que tem muita relação com o mundo atual, o mundo real, que é um território que nunca foi invadido pelos europeus, que se fechou em si e tem uma tecnologia, que através dela eles têm um desenvolvimento social diferente dos outros países. E me chamou muita atenção que isso se relaciona demais com a história da Etiópia. Comecei a pesquisar e a Etiópia foi o único país africano que não foi colonizado; a Itália tentou invadir, mas ganhou a guerra contra a Itália. Então, é uma referência pan-africana. E essas potências de temáticas afrodiaspóricas, eu fiquei pensando “Esse filme tem muito poder, ele não é somente um filme da Marvel, ele é diferente dos outros”. O diretor é negro, até na trilha sonora, todos os profissionais envolvidos no filme são negros e é diferente de como a Marvel opera nos seus filmes. E curiosamente, nos primeiros meses de escrita, eu ainda nem fazia ideia do afrofuturismo. Eu descobri o afrofuturismo e foi assim uma explosão. Porque estava o tempo todo na minha cara, eu já ouvia as músicas de Janelle Monáe, por exemplo, e uma semana depois a Beyoncé lançou o “Black is King” escancarando o que era afrofuturismo na cultura pop. Eu falei “Nossa, eu tenho uma potência em mãos”. E aí foi esse encantamento, de escrever e me encantar com o conceito, ver que ele não é um conceito cristalizado no tempo e no espaço. Muito pelo contrário, ele é fluido, ele se relaciona com essa outra perspectiva, esse outro modo de se pensar o tempo. E aí fui começando a articular autores brasileiros e estrangeiros, vendo que tinha uma bibliografia muito extensa, mas na busca de artigos, de TCCs, dissertações, por exemplo, tinha uma lacuna que eu posso ocupar. Eu tive esse entendimento de trazer autores, que não estavam sendo usados tão veementemente, para a área da Comunicação. Por exemplo, a Aza Njeri, que trabalha com os Espólios de Maafa e relaciona isso com a questão do epistemicídio; tem o Atlântico Negro, que eu busquei trabalhar com o Hall e Gilroy, mas adensar isso com a questão da catástrofe para trazer uma espécie de identidade para a minha dissertação. E quando eu estava escrevendo o capítulo dois, foi quando ocorreu o falecimento do Chadwick Boseman, e eu tinha uma reunião com minha orientadora e ela falou assim: “Você tem um fenômeno na sua frente, você vai ter coragem de se jogar nesse fenômeno e analisar isso de forma respeitosa? Você consegue usar a morte de uma forma não pejorativa?”. Havia todos esses cuidados e eu falei assim: “Não, isso está na minha frente aqui e eu tenho que trazer essa sensação para minha dissertação, essa sensação que eu estou escrevendo aqui e agora, mas o fenômeno está ocorrendo aqui”. Eu me lembro de escrever, de ir atrás das reportagens que foram veiculadas no mesmo dia, lidar com o fenômeno antes mesmo de ele ser cristalizado ou ser cooptado por tantas coisas. O meu terceiro e quarto capítulos, que são os capítulos de análises, foram muito movidos por essa coisa de eu tenho que me jogar no fenômeno. Eu ligo a televisão e está falando da morte do Chadwick Boseman, aí mais tarde a Globo faz uma chamada especial para a Tela Quente, e aquilo foi me dando cada vez mais certeza de que o fenômeno que eu estava observando era muito potente. Não é somente uma escrita, mas é um modo de me identificar, e tudo isso tendo como background a pandemia. Então ver como é que eu lidaria com todos esses fenômenos acontecendo da melhor maneira possível e não perder de vista essa questão do afrofuturismo, para não tornar ele somente uma estética, uma coisa somente visual, mas uma filosofia de vida e que aí não é somente um único conceito, né? Eu trabalho a questão dos afrofuturos, justamente essa multiplicidade de afrofuturismo, de afro pessimismos, de sempre pensar na negritude por outras perspectivas, outras possibilidades de lidar com o tempo, com o espaço.
Compós: Em termos práticos de construção de uma dissertação de mestrado, e também pensando na sua trajetória e vivência enquanto pesquisador, para além da pandemia, qual foi o maior desafio durante a sua pesquisa?
Alexandre: O maior desafio, eu acho que falei anteriormente, essa questão de construir uma dissertação fluida e que desse conta dessa magnitude de conceitos que eu estava articulando ali… O afrofuturismo, a cultura pop, trazendo exemplos de filmes, de séries, de álbuns, videoclipes… Tudo isso era muito escopo, muito corpus analítico e aí, às vezes, o pesquisador pode se perder nessa escrita. Quando ele não tem um “Aonde eu quero chegar?”, ele pode se perder em meio a tantos corpus, desviar o foco. Sempre mantive muito veemente o meu foco, que era escrever o mais claro possível sobre esses fenômenos que eu estava analisando, mas não me prender a academicismos. Escrever de uma maneira muito fluida e que pessoas de fora da área da Comunicação lessem e entendessem da melhor forma possível. Que não se prendesse a maneirismos da área da Comunicação, dos Estudos Culturais, que não se prendesse à forma da ABNT de se apresentar os autores, e trabalhar o conceito. Fazer uma escrita preguiçosa de pegar uma referência e jogar essa referência e pronto. Mas sim destrinchar aquela referência: “Por que o autor escolheu essa maneira de escrever? E como é que isso se relaciona com o objeto de pesquisa?”. Acho que é nunca perder essa relação… “O Pantera Negra me levou a esse autor porque através desse autor posso falar, posso problematizar o Pantera Negra”; “De que forma? Através desse autor, desse conceito da área da Comunicação, dos Estudos Culturais, me permite articular esse produto dentro da cultura pop”. Precisou de uma frieza para escrever uma dissertação fluida e dinâmica. Me lembra das orientações, essa questão de escrever e de reescrever também, buscando sempre tirar os travamentos possíveis.
Compós: Sua pesquisa é feita a partir das reações das pessoas nas redes sociais, em relação à morte do intérprete de Pantera Negra, que é um ambiente muito rico para pesquisas, mas pode ser um espaço bastante difícil para quem estuda minorias, em geral. Como foi o seu processo de pesquisa e de coleta de dados nesse ambiente?
Alexandre: Existe uma infinidade de redes sociais, de sites, de perspectivas de coleta, e eu me centrei no Twitter e Instagram para analisar esse fenômeno. E aí o que me ajudou demais foi saber articular da melhor maneira possível o conceito de audiovisual em rede, que eu trago na minha dissertação. Que me permite essa liberdade de construir esse rizoma, articular essas imagens, essas postagens e, acima de tudo, a questão das hashtags. Elas foram um norte que me fez rastrear esse corpus analítico, foram as hashtags que me levaram ao Twitter. E encarando essa questão do fenômeno, eu vejo como um disparo midiático. Foi o Twitter que trouxe a notícia que o ator tinha falecido, na sua própria conta oficial, e isso reverberou no Instagram oficial também. Esse movimento para evitar fake news, notícias enviesadas, propagou essa notícia de forma oficial no Twitter e no Instagram, não foi num veículo tradicional, não foi no jornal, mas foi no perfil em duas redes sociais. Me chamou a atenção: “Opa, o fenômeno pode ser rastreado por aqui, tem um ponto de partida interessante”. E foi a partir desse post que eu fui vendo quais eram as imagens, os audiovisuais em rede que se relacionavam com essas duas postagens em ambas as redes. No Twitter e no Instagram se comunicavam demais as relações desse fenômeno… A questão de comentários racistas, de comentários tentando diminuir a importância dizendo que “Era só mais do mesmo”… Isso mostra também que a pesquisa não lida somente com o fenômeno de uma forma de exaltação. E isso abre brecha pra gente compreender como é que a questão da negritude em diásporas é tratada nas redes sociais e na sociedade brasileira. “Como é que essa questão de se ter um super herói negro incomoda várias pessoas? Por quê? Por que as pessoas se sentiam incomodadas a ponto de ir comentar que não gosta do filme, do super-herói negro, que isso é lacração?”. É muito essa questão dos afetos em rede, as pessoas se sentem mobilizadas pelo amor, mas também pelo ódio. O ódio também engaja. O hater engaja muito, principalmente quando se trabalha com produções da cultura pop, filmes e séries protagonizados por minorias… Negros, negras e mulheres sofrem muito com os haters nas redes sociais. E isso é um fenômeno que tem que ser analisado de uma forma muito mais detalhada, aprofundada. É um ódio enviesado, um poder hegemônico tentando se reiterar de todas as formas possíveis, não dando brechas para que outras percepções, outros protagonismos brilhem da devida forma possível.
Compós: No segundo capítulo, sobre um dos seus aportes teóricos, o afrofuturismo, há um subcapítulo em que você fala de “reivindicar futuros negros”. Você encara a sua pesquisa como um manifesto, no sentido de ser um trabalho que nos faz um convite à reflexão para exigir uma outra forma de olhar os corpos negros, olhar a produção das pessoas negras, olhar para o protagonismo negro?
Alexandre: Nunca tinha pensado nisso dessa forma, mas eu sempre penso como um ato ou um modo de me postar perante o mundo… “O que eu tenho a dizer sobre isso?”. As reivindicações ocorrem justamente por perceber que existem lacunas com relação às sensibilidades afrodiaspóricas e que existem anseios e desejos que não foram atendidos. Foi me mobilizando demais e assim, na constituição dessa dissertação, acho que é muito como um ato. Na parte da introdução e no primeiro capítulo, que eu falo da coragem de abraçar o caos, que é entender que eu estou lidando com um fenômeno, que de forma alguma é apaziguado, pelo contrário, e de encontrar uma saída que não recaia na questão de trabalhar a dor da negritude… Mas sim uma outra perspectiva. O afrofuturismo traz uma leveza para se trabalhar a negritude em diáspora, que sempre é muito batido essa questão do racismo, da violência, da necropolítica. Mas para além disso, para se pesquisar sobre a negritude, existe outra perspectiva: o afrofuturismo abre brecha para a gente trabalhar a cosmopoética, a cosmovisão, poéticas afrodiaspóricas. É como se fosse uma leveza no olhar para as dinâmicas que regem corpos e mentes de pessoas negras no Brasil, no contexto da diáspora africana. Eu acho que essa dissertação se abriu com esse espaço de dizer que ser negro é muito mais do que enfrentar a dor, enfrentar a morte. Mas é também se sentir feliz, compelido por uma narrativa que se tem um protagonista negro. Isso entra muito no que eu trago num capítulo, que é a questão dos Espólios de Maafa, que é esse suspiro, esse respiro em abraçar pontos que dão fôlego à negritude, que a Aza Njeri trabalha muito nisso. Eu acredito muito nessa perspectiva desse conceito, porque é justamente isso, né? Não é somente se prender a olhar a violência, mas quais outros olhares possíveis?
Compós: A diáspora negra é um tema que você tenciona bastante no seu trabalho e, assim como você já pontuou, é possível olhar para ela sem ser pela perspectiva da violência e da opressão. Como foi para você olhar para a diáspora dessa forma?
Alexandre: É, eu estava pensando agora… Na minha dissertação, ela tem como gatilho a morte, mas não é a morte de uma forma necropolitizada. É um falecimento por uma doença, de uma forma natural. O que para a maioria das pessoas negras não é o modus operandi; não é uma “morte morrida”, é de uma fatalidade. Acho que isso abre uma brecha para perceber que quando a gente vê pessoas negras em destaque no noticiário, é sempre esperando alguma coisa brutal, algum acontecimento ruim. E esse fenômeno abre espaço para perceber que não, que existem outras potencialidades. Pessoas negras podem mobilizar fenômenos que não se perpassam por essa tragédia, essa catástrofe. A performance do “Wakanda Forever”, que é de cruzar os braços em forma de “X” na altura do peito, como se tornou um ato identitário, né? Uma forma de se reconhecer, de prestar luto perante esse fenômeno que mobiliza corpos negros em diáspora. Me chamou a atenção o fato do Lewis Hamilton, na Bélgica, fazer esse gesto, LeBron James nos Estados Unidos, aqui no Brasil o Manoel Soares, a Maju Coutinho… E várias outras pessoas… Ter essa liberdade de postar, todos eles postaram em seus perfis oficiais essa homenagem. Me fez perceber essa outra forma de encarar a diáspora africana como outra geopolítica possível. Que Brasil, Estados Unidos, Bélgica estão conectados, não pela forma tradicional Ocidente/ Oriente, primeiro mundo/ segundo mundo. Estão conectados por essa questão da diáspora africana e que traz uma perspectiva que é pouco trabalhada, no meu ver, que é essa aí… “O que Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Haiti têm a ver?” Tem uma população que foi trazida de uma forma muito caótica, muito triste, mas essa população vive e revive buscando sempre a melhor forma possível de se existir. E acho que esses outros modos de se existir ainda ainda não tem um devido reconhecimento na área acadêmica, tanto que um dos meus interesses de pesquisa ainda continua explorar a diáspora de uma forma muito mais potente.
Compós: Passaram-se muitos anos com filmes de super heróis até termos o primeiro herói negro, a primeira heroína com seu próprio filme, um filme com o elenco mais diverso ou até majoritariamente negro… É difícil para as minorias ocuparem esses espaços na cultura pop. Existe um caminho para a mudança? Ou as minorias terão de construir seus próprios universos e aí então fazer caber mais gente?
Alexandre: Eu acredito que sim, acho que a saída, o modus operandi seria esse de criar outros universos, de se abrir espaço para outros protagonistas. E eu acho que isso tem se tornado cada vez mais factível, o eixo de se fazer com que esse mundo exista tem centrado muito nas questões das redes sociais. Antes, para se ter uma visibilidade, tinha que recorrer muito a um modelo clássico, televisão, rádio. Hoje, pra você ter evidência em torno de uma causa, se recorre à questão da identidade e quais são as exigências que se configuram no nosso cotidiano, no nosso mundo contemporâneo. Cada vez mais se exige reconhecimento dessa identidade. Você entender de onde você vem e através disso o que você pode ofertar para o mundo. Esse entendimento de o que te mobiliza enquanto pessoa. A negritude tem utilizado essa mudança desse eixo para redes sociais como uma forma também de ocupar. Esses outros universos, outros mundos que são construídos, são construídos também nas redes sociais, nesse ínterim entre o mundo virtual e o mundo real, que antes existia uma brecha, uma fronteira. Hoje em dia, o que ocorre no mundo real e nas redes sociais tem uma relação de causa e consequência muito intensa, muito dinâmica. E quem entende essa linguagem primeiro, tem vontade de estar ali e de mostrar outras perspectivas, outro modo de se viver. Mostrar: “Por que nunca se teve uma protagonista mulher? Por que nunca se teve um protagonista homem negro?”. Acho que cada vez mais as pessoas se incomodam que vão assistir uma novela e só tem pessoas brancas protagonizando aquela novela. Isso vai reverberar nas redes sociais, vai virar trending topics, vai gerar burburinho. Então como é que os modos de se pensar estão mudando? As pessoas já estão começando a se sentir incomodadas quando não se tem representatividade de forma qualitativa, né? E aí como é que o feminismo tem abraçado as redes sociais? Tem visto como uma forma de reverberar os seus discursos e humanizar os seus discursos, não ficar somente preso ao academicismo. A mesma coisa eu digo sobre a negritude, como o movimento negro tem utilizado as redes sociais para trazer suas pautas? É de forma mais dinâmica, não ficar somente naquele discurso do púlpito, “Tem uma pessoa que fala e as outras pessoas ouvem”. Esses modelos são construídos nesse entendimento de “Como é que essas demandas são exigidas e são atendidas?”, nessa relação entre redes sociais, videoclipes, YouTube, streaming, hashtags, entre outras coisas que dizem muito sobre esse modo como nós nos compreendemos enquanto sociedade.
Compós: Nós agradecemos por esta conversa tão cativante e relevante para a pesquisa em Comunicação, e também por sua disponibilidade em estar aqui conosco hoje. Se você sentir que algo mais precisa ser dito, deixamos este espaço aberto.
Alexandre: Não, não, eu estou muito contemplado pelas perguntas e muito lisonjeado pela entrevista, fico muito feliz. Muito obrigado.
Acesse este link e leia a dissertação de Alexandre Souza da Silva na íntegra.