Compós entrevista: Andrielle Cristina Moura Mendes Guilherme, autora da tese vencedora do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela de 2023

A Compós entrevistou Andrielle Cristina Moura Mendes Guilherme, doutora e mestra em Estudos da Mídia pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos na Mídia (PPgEM) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), especialista em Gestão de Pessoas pela Universidade Potiguar e bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela UFRN. Hoje, é pesquisadora do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia da Fiocruz e também graduanda em Pedagogia na UFRN.

Andrielle é vencedora do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023. Sua tese, intitulada Comunicadoras Indígenas e a De(s)colonização das Imagens, investiga quais estratégias midiático-comunicacionais três comunicadoras indígenas brasileiras utilizam para propagar as suas ideias, que imagens elas ativam, e como essas narrativas ajudam a tensionar o imaginário social dominante sobre suas vivências. Andrielle foi orientada pelo Prof. Dr. Juciano de Sousa Lacerda.

Compós: Para iniciar a nossa conversa, gostaria de perguntar a você o que significou para a sua carreira acadêmica e profissional receber o Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023?

Andrielle: Concorrer ao prêmio era um sonho distante. Enfrentei muitos desafios durante o doutorado e pensei em desistir da carreira de pesquisadora. Mudei de orientação na metade do doutorado e com o novo orientador recobrei a minha autonomia, elaborei um outro projeto e comecei a investigar a descolonização das imagens a partir das estratégias midiático-comunicacionais adotadas por escritoras indígenas brasileiras, tese que me rendeu o Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023. Logo após receber o prêmio, fui convidada para atuar como pesquisadora do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia da Fiocruz. Tenho sido convidada para apresentar a minha tese em diferentes disciplinas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde me formei, e também em outras instituições, e recebido convites para colaborar como parecerista de revistas e eventos científicos no país e dar palestras sobre os temas que pesquiso.

Compós: A sua pesquisa trata de comunicadoras indígenas e suas estratégias comunicativas para denunciar o racismo, as violências e também mostrar o que é, de fato, ser indígena. Você poderia contar aos nossos leitores de onde partiu o interesse de estudar esse tema?

Andrielle: Antes de mudar de orientador, eu pesquisava o apagamento, a invisibilização das mulheres na produção e reprodução de conhecimento e cultura. Não demorou muito para eu perceber que esse apagamento não se dava de forma homogênea. Os primeiros resultados que obtive apontavam que as mulheres negras e as mulheres indígenas eram ainda mais invisibilizadas. Comecei a ficar intrigada com a ausência de mulheres racializadas na bibliografia das disciplinas da universidade e com a ausência delas nas bibliotecas das escolas onde eu havia estudado. Eu comecei a ler aos quatro anos de idade e a biblioteca era o meu lugar favorito na escola, mas eu só fui me dar conta que não havia lido nenhum livro escrito por um autor, por uma autora indígena, quando comecei a observar, durante o doutorado, quais obras estavam sendo lidas no projeto Leia Mulheres em São Paulo e em Natal. O incômodo se tornou ainda mais agudo, quando certo dia, após mediar uma mesa temática sobre ecologia dos saberes na UFRN, um homem me parou antes que eu alcançasse a saída do auditório e perguntou qual era a minha etnia. Emudeci. Não tinha resposta tampouco esperava aquela pergunta. Aquele homem era o pajé do povo Potiguara de uma comunidade indígena no Rio Grande do Norte e estava no evento acompanhando o cacique, a liderança da comunidade, que estava participando da mesa. O pajé comentou que a minha ascendência indígena era muito forte e recomendou que eu procurasse os documentos dos meus antepassados a fim de identificar a qual povo eu pertencia. Voltando para casa, revisitei parte da minha história e recordei que dez anos antes desse encontro a minha mãe havia se autodeclarado indígena no censo do IBGE. Naquela época, eu acreditava que indígena era apenas quem morava na floresta, vivia da caça e da pesca e não falava português, uma visão colonialista que ainda está presente no imaginário social e midiático. Mas após aquele encontro vi que esse imaginário não condiz com a realidade; aprendi que há centenas de povos indígenas vivendo em todas as regiões do país e que há muitas pessoas como eu e minha mãe que nasceram e cresceram na cidade, mas que se reconhecem enquanto indígenas e estão tentando reestabelecer o vínculo com suas comunidades de origem. Essa percepção mudou a minha forma de enxergar o mundo e de fazer pesquisa.

Compós: E como foi a escolha das protagonistas que ilustram a sua pesquisa?

Andrielle: Geralmente quando perguntam como eu cheguei até os nomes de Aline Rochedo, Graça Graúna e Márcia Kambeba – autoras indígenas cujas estratégias midiático-comunicacionais eu analiso na tese –, eu costumo responder que foram elas que me encontraram primeiro. O nosso encontro foi muito orgânico. Aline Rochedo, Graça Graúna e Márcia Kambeba estão entre as autoras indígenas que mais publicam livros no Brasil e chama a atenção o número de livros publicados por elas (alguns deles autofinanciados), a variedade de temas e, especialmente, o alcance de suas obras – algumas delas difundidas internacionalmente. Os livros delas primeiro chegaram até a mim, depois eu cheguei até elas e juntas tecemos essa tese. 

Compós: Ao longo da sua tese, você compartilha um pouco da sua origem e suas percepções sobre a própria invisibilidade racial, algo que a conecta com o seu objeto de pesquisa. Quais foram os desafios de encarar algo tão próximo a si mesma?

Andrielle: Esta pergunta é muito interessante. E é interessante porque sempre que respondo, acesso uma camada que até então estava inacessível. Como comentei, eu mudei de orientação durante o doutorado. Entre os desafios que enfrentei antes da mudança estava a dificuldade, a impossibilidade, de pensar o meu pensamento e dizer a minha palavra. O meu antigo orientador não aprovava a forma como eu escrevia, e como eu escrevia conforme eu pensava, eu não me sentia autorizada a pensar livremente. Os trechos que eu avaliava como “menos científicos”, já condicionada pelo julgamento dele, eu colocava no apêndice da tese. Mas quando eu chegava nas bancas de preparação para a defesa (na UFRN, passamos por várias delas ao longo da pós-graduação), os examinadores diziam que aquele texto deveria sair do apêndice e ir para o início da tese; que aquelas reflexões faziam parte do meu percurso como pesquisadora, como cientista. Quando mudei de orientação, me senti “autorizada” a expressar aquilo que antes eu era impedida. Pude, enfim, pensar o meu próprio pensamento e dizer a minha palavra. Sendo muito sincera, o maior desafio de encarar algo tão próximo a mim mesma foi encontrar um orientador que assumisse o risco de orientar uma pesquisa com essa abordagem. 

Compós: Você poderia compartilhar conosco o que é a Catografia? Como foi elaborada, quais os desafios de construir a própria metodologia e como ela enriquece a sua pesquisa?

Andrielle: Eu costumo comparar a Catografia a um vaso de barro. Tal qual oleiro que molda um pote a partir do barro já existente, sistematizei essa estratégia metodológica a partir de metodologias e abordagens já criadas, adicionando a elas impressões minhas, pois sabia que é praticamente impossível partir de um lugar onde ninguém esteve antes, usar as palavras que ninguém usou ou as imagens que ninguém imaginou antes de nós. Dediquei um capítulo inteiro da tese à construção da metodologia. Mas diria, de forma muito resumida, que a Catografia foi a metodologia que sistematizei para mapear como indivíduos oriundos de grupos sociais escravizados durante a colonização se apropriam das mídias como uma forma de responder às violações decorrentes do racismo estrutural na sociedade. Inspirada na prática milenar de coletores e catadores originários e tradicionais, a Catografia tem como objetivo desinvisibilizar as narrativas de qualquer grupo historicamente discriminado que vise a sua autodeterminação através da apropriação da mídia com vistas a de(s)colonização das imagens. Quando aplicada à imagem (lembrando que texto também pode ser considerado imagem), a Catografia contribui para identificar como povos destituídos de humanidade durante a colonização e transformados em mercadoria de olhares durante a escravização politizam o olhar para enfrentar as imagens de controle utilizadas até hoje para determinar o lugar dos sujeitos racializados na sociedade. Em minha tese, utilizei a Catografia para analisar o que as comunicadoras indígenas brasileiras fazem para propagar as suas ideias (quais estratégias midiático-comunicacionais utilizam), que ideias elas ativam e colocam em circulação, e como essas narrativas ajudam a construir uma outra visão sobre o mundo. Ecoartesã que sou, pensei essa metodologia imaginando o percurso de uma coletora de sementes, quando entra na mata em busca de matéria-prima para compor aquilo que ficará conhecido como uma artesania sua. Mirei como matéria-prima principal as narrativas das autoras. Minha primeira atitude enquanto coletora de palavras-semente e catadora de grafias, foi observar o campo. Depois comecei a coletar os dados. Em seguida, analisei e os combinei junto com Márcia, Graça e Aline, interlocutoras da tese e tentei, ao longo do percurso, me despir do colonialismo persistente, ciente de que para apanhar algo, é necessário, primeiro, soltar o que seguramos. Percebi, durante o percurso, que essa metodologia possui três características principais: interesse mútuo entre as pessoas que participam da investigação; vínculo estabelecido entre os interagentes durante a coleta das grafias; e implicação do interagente na pesquisa (os interagentes não respondem apenas, como também fazem questionamentos, suscitam reflexões, apontam caminhos). Eu poderia dizer que o maior desafio foi sistematizá-la e aplicá-la, mas enquanto reflito sobre a minha resposta, chego à conclusão que o maior desafio foi acreditar que eu – uma mulher indígena que nasceu e vive até hoje no único estado brasileiro sem terra indígena demarcada – poderia criar uma estratégia metodológica e, mais do que isso, uma metodologia que fosse reconhecida como relevante por outros pesquisadores. Sem a Catografia não existiria a tese; não da forma como ela foi tecida. 

Compós: Um dos pontos mais importantes do seu trabalho se refere a esse resgate histórico do apagamento dos povos indígenas ao longo da história de nosso país. Quais são as saídas para contornar tudo o que foi construído/ destruído pela colonização?

Andrielle: Até a metade do doutorado, eu não sabia que existiam indígenas escritores; muito menos pesquisadores e cientistas indígenas. A invisibilização das contribuições dos povos indígenas no Brasil ainda é um desafio a ser enfrentado. No Rio Grande do Norte, estado onde eu nasci, esse apagamento é tão agudo que hoje o RN é o único estado brasileiro sem terra indígena demarcada, embora o estado abrigue pelo menos 16 comunidades indígenas politicamente articuladas. Não acredito que exista uma saída para contornar tudo o que foi construído/ destruído pela colonização. Essa é uma dívida impagável (recuperando aqui um conceito de Denise Ferreira da Silva). Vivemos em um país que foi uma Colônia e isso, de algum modo, nos constitui. Tanto nos constitui que até hoje as pessoas oriundas de grupos que foram escravizados (negros e indígenas) são a minoria em espaços de legitimidade social. Mas acho que podemos avançar… Podemos avançar se reconhecermos (e assumirmos) que algumas práticas colonialistas perduram até hoje, inclusive nas universidades; podemos avançar se nos comprometermos a tornar os espaços menos hostis para os pesquisadores racializados; podemos avançar se colocarmos em prática políticas de permanência para alunos negros e indígenas; se incluirmos mais autores racializados na bibliografia das disciplinas que ministramos; ao permitir que estudantes negros e indígenas tenham abertura para pensar o seu pensamento e dizer a sua palavra. Não sei se seria uma saída. Mas pode ser um ponto de partida.

Compós: A partir da sua origem, da sua história e considerando tudo o que é produzido na academia sobre este tema, você consegue avaliar ou mensurar o impacto da sua tese para as pesquisas sobre indígenas e outras minorias históricas?

Andrielle: Soube que a tese “Comunicadoras indígenas e a descolonização das imagens” foi apresentada para turmas da graduação na Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); que a Teoria do arco comunicacional (que sistematizei) vai ser incluída no conteúdo da disciplina Teorias da Comunicação na UFRN e que a Catografia está sendo utilizada por uma pesquisadora indígena em seu doutorado na Universidade Federal do Ceará. São informações que chegaram até a mim. Mas considero que a minha maior contribuição foi mostrar que os pesquisadores indígenas podem contribuir com a produção de conhecimento científico; que, ao contrário do que nos foi dito no passado, podemos sim produzir ciência.

Compós: Agradecemos pela gentil entrevista e por uma tese tão relevante, inspiradora e necessária. Você gostaria de compartilhar com a nossa audiência mais alguma informação que julgue importante?

Andrielle: As perguntas abordam muitas questões relevantes e me oportunizaram refletir sobre parte de minha trajetória. Não vejo o que acrescentar. Mas deixo aqui um link onde vocês e outras pessoas podem encontrar mais informações sobre a tese e a minha trajetória: https://www.youtube.com/watch?v=NNKjwjgag9U&t=110s 

Quer conferir a tese vencedora de 2023? Acesse este link e leia na íntegra.