Compós entrevista: Tatiana Clébicar Leite, menção honrosa do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela de 2023

A segunda entrevista de nossa série sobre os vencedores do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023 é com Tatiana Clébicar Leite, doutora em Informação e Comunicação em Saúde pela Fiocruz e graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela PUC-Rio. Atualmente, Tatiana é professora auxiliar convidada da Licenciatura em Comunicação e Relações Públicas da Universidade dos Açores, Portugal. Também integra o grupo de pesquisa Diversidade Sexual, Cidadania e Religião, da PUC-Rio, e o projeto “Covid-19 nas mídias: em quem confiar? Narrativas, atores e polêmicas sobre a pandemia”, da Fiocruz.

Com a tese “’Transver o mundo’: o Dia Nacional da Visibilidade Trans pela ótica de pessoas, campanhas e notícias”, Tatiana recebeu menção honrosa no Prêmio Compós Eduardo Peñuela e ainda o Prêmio Oswaldo Cruz de Teses na área de Ciências Humanas e Sociais e o terceiro lugar no Prêmio Intercom de Pesquisa em Comunicação. Tatiana foi orientada pela Prof.ª Dr.ª Kátia Lerner e coorientada pelo Prof. Dr. Guilherme Almeida.

Compós: Eu gostaria de iniciar perguntando a você o que significou para a sua carreira acadêmica e profissional receber a menção honrosa do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023?

Tatiana: Em qualquer situação, receber a menção honrosa do Prêmio Compós seria motivo de enorme alegria e orgulho. Recebê-la no primeiro encontro – após formalmente encerrada a emergência de saúde global da covid-19 e democraticamente vencidas as forças que acentuaram seus efeitos no Brasil – foi ainda mais significativo. Essa percepção foi resultado da leitura das teses das outras duas colegas contempladas. Nossos três trabalhos, que dialogaram com populações historicamente vulnerabilizadas e especialmente atacadas entre 2018 e 2022, adotaram estratégias distintas para estabelecer relações de pesquisa tão horizontais quanto possível. Para mim, o reconhecimento, que se somou ao primeiro lugar no Prêmio Fiocruz de Teses na categoria Ciências Humanas e Sociais e ao terceiro no Prêmio Intercom, chegou ao fim de um ciclo infeliz e renovou a minha aposta numa produção acadêmia construída coletivamente, de forma muito zelosa com todas as pessoas envolvidas. Do ponto de vista profissional, acredito que a chancela de três instituições ao trabalho tenha contribuído para minha inserção num novo ambiente acadêmico. Três dias após defender a tese, eu me mudei do Rio. Atualmente, atuo como docente na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada. 

Compós: A sua pesquisa aborda um assunto cada vez mais necessário, que é a (in)visibilidade das pessoas trans. Você parte do reconhecimento formal desse tema, em 2004, com a instituição do Dia Nacional da Visibilidade Trans e analisa seu objeto de pesquisa por várias perspectivas. Qual é o papel da comunicação nessa história?

Tatiana: A pesquisa reforçou em mim a percepção da comunicação como direito fundamental para a conquista e a manutenção de outros direitos, algo muito enfatizado na Fiocruz em relação à saúde. No caso específico da visibilidade trans no Brasil, os movimentos sociais souberam agenciar a ocupação de instâncias refratoras das suas demandas, como as campanhas produzidas pelo Governo Federal e pelos jornais. 

Compós: Algo muito importante, que atravessa a sua tese, é a questão do “esforço de uma comunicação horizontal”. Não é algo tão comum, pois a gente é ensinado a fazer pesquisa olhando o objeto de longe, lendo o objeto… a gente não costuma “fazer o objeto falar com a gente”. Como foi esse processo de fomentar a participação das pessoas em todas as etapas da pesquisa?

Tatiana: Compreendo a sua pergunta, mas tendo a discordar ligeiramente da forma como a formulou. Tenho a sensação de que, em muitos contextos, o que há é justamente um esforço para fazer “o objeto falar” e o/a pesquisador/a escrever, analisar, concluir… É claro que essas são tarefas constitutivas da pesquisa científica, mas, como você percebeu, eu tinha uma preocupação em não me apropriar de um conhecimento construído de forma coletiva. Em alguns momentos, isso me paralisou. A Kátia Lerner, que conduziu a orientação de forma muito sensível tendo o Guilherme Almeida como coorientador, muitas vezes precisou me ajudar a, não sendo extrativista como ela dizia, encontrar o meu lugar de autora. Foi durante a etapa de transcrição das entrevistas que a ideia de colocar o trabalho sob o olhar dos/as/es participantes surgiu. Fui eu mesma quem transcrevi as entrevistas e acredito que o “contato” prolongado com as suas ideias, sentimentos, dúvidas, queixas criou essa necessidade, que foi amadurecida no processo de (co)orientação. Inicialmente, pensamos em fazer um encontro em grupo, mas poderia haver constrangimentos. Então, acabamos optando por uma rodada de apresentação individual dos resultados, seguida das conversas. Foi uma escuta reverente, mas não subserviente, que ocorreu com a maioria das pessoas entrevistadas, depois de uma nova consulta ao Comitê de Ética em Pesquisa.

Compós: Qual foi o maior desafio, no seu processo de pesquisa, durante as entrevistas? E qual foi a maior conquista nessa etapa, que você considera que enriqueceu ainda mais a sua tese?

Tatiana: Não sei se ocorre com você, mas custei muito a me sentir autorizada a construir uma tese que discutisse a questão trans sendo uma mulher cis. No primeiro ano do doutorado, quando já estava fazendo disciplinas específicas sobre gênero, tive a oportunidade de ter professores/as convidados/as/es trans que enfatizavam o sentimento de usurpação por parte da academia. Aquilo foi me angustiando, mas encontrei na literatura um modo de me aproximar do tema da forma como me pareceu respeitosa: os trabalhos da Linda Alcoff e da Gayatri Spivak, que tratam de relações de alteridade e assimetria em pesquisa. Além disso, trabalhando com o conceito de visibilidade a partir de Merleau-Ponty, compreendi que também fazia parte de uma dada instância para que as identidades trans fossem percebidas. A visibilidade também depende de quem vê e, nesse sentido, eu também participava do processo. Por último, percebi que focar apenas no que nos diferencia encobria o que nos aproxima. Só a partir daí foi possível construir pontes, que de alguma forma se mantêm, mesmo encerrado o trabalho. Fiquei muito feliz de contar com um participante na defesa da tese e do modo com que a maior parte celebrou as premiações que o trabalho recebeu. Isso também ocorreu com a banca examinadora, diversa em gêneros, saberes e atuações.

Compós: A sua tese é muito importante em um sentido documental ou historiográfico, pois faz um compilado das ações governamentais e comunicativas em prol das pessoas trans. Olhando agora, com o distanciamento que só o tempo pode nos proporcionar, você consegue mensurar a relevância da sua tese para o ativismo trans?

Tatiana: Representantes dos movimentos sociais poderão responder esta pergunta melhor do que eu… Acredito que o trabalho se soma a outros para registrar certas ações e figuras relevantes na construção da visibilidade trans. Penso, por exemplo, na dissertação do Bernardo Mota, participante da tese, que investigou arquivos literários transmasculinos durante o seu mestrado em Comunicação na UNB. Tenho a impressão de que a relevância das pesquisas se amplia quando percebemos que essas produções compõem um mosaico que nos ajuda a compreender de forma multifacetada as questões de gênero no Brasil. 

Compós: No quinto capítulo você fala sobre as armadilhas da visibilidade. Como nós, pesquisadores e comunicadores, podemos falar das pessoas trans, de suas demandas, de suas lutas sem cair nessas armadilhas?

Tatiana: De certa forma, toquei nesse ponto nas perguntas 3 e 4. Gostaria de insistir na ideia de não “falar das” pessoas trans, mas falar com as pessoas trans ou com quaisquer outros grupos. Isso muda a ida a campo, a formulação das questões e o modo de refratar os discursos e, guardadas as especificidades de cada campo, vale tanto para a produção científica quanto para a jornalística.

Compós: Um dos resultados da sua pesquisa é que, infelizmente, ainda estamos longe de uma comunicação realmente comprometida com a visibilidade das pessoas trans. Existe um caminho possível para contornar esse fenômeno e construir uma nova forma de comunicar?

Tatiana: Acho que não há caminho pronto. Está sendo pavimentado aos poucos pelos movimentos sociais e uma parcela expressiva da sociedade. Um indício é a eleição de parlamentares trans nos níveis nacional, estadual e municipal. A presença de Erika Hilton e Duda Salabert no Congresso e de Dani Balbi, que também participou da tese, na Assembleia do Rio, por exemplo, é resultado desse caminho. Elas foram eleitas com votos da comunidade trans, mas não só. Seus corpos nesses espaços ainda se distinguem; é preciso que se naturalizem ali e em muitos outros lugares. Para isso, é preciso garantir que os direitos já conquistados de modo árduo não sejam tratorados por forças reacionárias e essencialistas.

Compós: Muito obrigada pela sua entrevista e por sua tese, que é tão significativa e importante. Você gostaria de compartilhar algo mais?

Tatiana: Eu que agradeço a delicadeza do seu contato e o modo como construiu as perguntas. Se o trabalho tem méritos, é porque houve pessoas dispostas a contribuir e a criticá-lo de forma construtiva.

Acesse este link e leia a tese de Tatiana Clébicar Leite na íntegra.