A Compós entrevistou Daniela Borges de Oliveira, mestra em Comunicação (Universidade Estadual Paulista), graduada em Jornalismo (Universidade Metodista de Piracicaba), e autora da dissertação vencedora do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2024. Sua pesquisa, intitulada Experiência estética em ambiente de partilhas: interações de ouvintes e podcasters do Afetos e Não Inviabilize, investiga como se dá a experiência estética dos ouvintes desses dois podcasts, produzidos por mulheres negras que compartilham histórias e experiências pessoais, suas e dos e das ouvintes, em grupos no Telegram.
Compós: Qual a importância do prêmio para você? Como esse reconhecimento impactou a sua trajetória?
Daniela Borges de Oliveira: O prêmio foi para mim uma conquista de perceber o que é a trajetória da pesquisa. Deu certo que a investigação tinha relevância, os resultados eram importantes. O extremo cuidado da trajetória em si da pesquisa, tanto de descobrir como ser pesquisador no mestrado, até os métodos escolhidos, a ética da pesquisa… A vivência também no dia da entrega do prêmio e durante o evento foi muito importante para mim, porque ali eu me coloquei em contato com colegas, não só pesquisadores da Comunicação, mas do rádio, do podcast. E eu senti que esse lugar me colocou em destaque de alguma forma, que as pessoas agora reconhecem o meu trabalho, me reconhecem no campo. Então isso me ajudou, inclusive, para agora eu estar pensando de uma forma mais colaborativa, de como eu conduzo pesquisas. Onde eu estudo, que é na Unesp de Bauru, esse reconhecimento se estendeu também aos colegas, do interesse na minha pesquisa, os próprios professores usarem como exemplo. Então só trouxe resultados positivos e ainda está reverberando, o que é muito interessante e foi uma experiência que me incentivou a enviar trabalho esse ano pra Compós, foi a primeira vez que eu enviei e agora é aceito. Eu trago isso de herança, a experiência do ano passado, como um incentivo para participar esse ano.
Compós: Por que você escolheu os podcasts “Afetos” e “Não Inviabilize”? E quais as características que tornaram esses dois podcasts ideais para sua investigação?
Daniela: Eu já conhecia o podcast “Afetos” e foi o período da pandemia, de distanciamento social, em que as pessoas não se comunicavam e eu, pessoalmente, fui atrás de formas de me sentir acolhida. O “Afetos” eu comecei a ouvir muito mais durante esse distanciamento. E quando eu entrei no mestrado, foi um pouco nesse período também de finalização da pandemia, eu me senti acolhida pelas discussões sobre gênero, a vivência de ser mulher e aprendia muito também com a vivência que elas traziam como mulheres negras. A ideia deles era tratar do que as afetavam e eu me sentia afetada por elas, então eu fiquei pensando “será que tem outros podcasts? Que tenham esse teor de envolvimento com ouvinte?”. Porque é assim que eu me sinto, envolvida por elas. E aí, quando eu comecei a pensar nessa questão de experiências sensíveis dos ouvintes com podcasts, eu comecei a olhar características mais técnicas. Eu fiz parte do grupo do Telegram delas, agora se encerrou, mas ali com os ouvintes a discussão corria solta. A gente conversava diretamente entre si, não só com as profissionais. As pessoas acionavam uma experiência pessoal, íntima, de sobrevivências recentes, problemas, violências que viviam. Era um ambiente muito seguro. A ideia do “Não inviabilize” tem uma pegada bem diferente, não são debates, mas uma contação de histórias. Os ouvintes até participam no final com áudios, o programa também tinha um grupo no Telegram, então a minha seleção desse corpus foi porque elas criavam, por meio desse aplicativo de mensagem instantânea, um ambiente para o diálogo com os ouvintes. Aí tinham essas diferenças, que eu analisei também, como que se dá essa experiência do ouvinte considerando que elas têm esse espaço para se comunicar com eles diretamente? Se os ouvintes, da mesma forma que vai acontecer no “Afetos”, se relacionavam ou não, se era muito mais uma resposta aos episódios. Mas eu queria entender qual a potencialidade desses grupos em relação à afetação dos ouvintes, de trazerem experiências pessoais, se eram ambientes de diálogo mesmo. E foi assim que eu escolhi esses dois programas, por conta dessas características, tanto de comportamento humano, que elas tratavam de histórias reais, histórias de pessoas, sensíveis, mas também por conta de terem esse grupo para contato com os ouvintes, que eu chamei também de espectadores.
Compós: Você fala sobre um conceito, a partilha sensível. Como ele se aplica dentro desses grupos? Como você conseguiu vislumbrá-lo?
Daniela: A ideia de partilha sensível está muito dentro do apanhado teórico que fiz da comunicação como experiência estética. As partilhas sensíveis, do Rancière, trabalham essa ideia de que criam-se ambientes comuns de partilha. A gente pode pensar na sociedade, num grupo religioso… Que é quotidiano e que as pessoas estão ali, não só em consenso entre si, como trazendo dissensos. É um lugar em que as suas experiências sensíveis vão ser trazidas à tona, mas não só isso, como cada um tem as suas questões que se atravessam… Pessoas que são autorizadas ou não pela sociedade a falar e quem não consegue atingir esses lugares. Então, partilha sensível é essa forma de associar o que é da vivência sensível dos indivíduos, dos sujeitos com o que é da experiência política. Porque elas estão entrelaçadas, não é possível pensá-las isoladamente, pensar a comunicação como essa transmissão de informação, é uma comunicação que envolve diálogo, transformação. Que nas trocas a gente produz esses sentidos e vai reelaborando nossas experiências de vida. É nesse sentido de pensar esses espaços comuns que eu estava vendo nesses grupos. Que tipo de partilhas eles traziam, que experiências acionavam e como elas tinham relação com a identidade de cada um? Com um olhar mais de pertencer o coletivo, a potência política, considerar as opressões que cada um vive. Ela traz ainda esse olhar da sensibilidade, da experiência estética e que também é da outra teoria, das mediações, que vai pensar aquilo que nos atravessa no dia a dia, dos lugares que a gente ocupa como gênero, raça, localidade geográfica, faixa etária… Mediações cognitivas sobre que tipo de coisas nós lemos, que cultura consumimos. Institucionais como as normas familiares, da sociedade, religiosas que nos afetam… Pensar que tudo tem a ver com sermos afetados por algo e sermos transformados continuamente, de forma dialética. As partilhas sensíveis traziam isso, olhar mais da potência política ou da importância de haver também dissensos nessa comunicação, que nem sempre as pessoas vão concordar em algo, mas às vezes discordar… Ajudava a ter um outro olhar, perspectiva, o que era muito importante porque eram grupos diversos e majoritariamente subalternizados, marginalizados historicamente. Não tinha como olhar para eles sem pensar também nessas questões, as opressões e desaparecimento político dessas vozes.
Compós: Como foi estar nesses grupos, olhando para essas pessoas e percebendo a interseccionalidade?
Daniela: Por estar no mestrado e ser o meu primeiro contato com o conceito, eu percebo até que, na minha banca isso foi apontado, eu ainda não usei todas as potencialidades do significado da interseccionalidade. Ela não é só uma teoria, uma crítica da sociedade, uma ferramenta analítica. Eu tentei dar esse tom do olhar mais cuidadoso, sensível, mas ele ainda ficou na interseccionalidade como uma categoria analítica, pensando em que tipos de lugares, que são marcadores sociais, podem influenciar no resultado que eu vou ter e no cuidado para avaliar, considerando a minha localização como mulher, branca, subdestina, latino-americana. Isso é uma questão que me ajuda a apontar, por exemplo, fragilidades da pesquisa. Então a interseccionalidade apareceu ali mais para enriquecer a teoria das mediações, que vai falar desses lugares da identidade, incluindo esses que a teoria das mediações não dava conta. Foi um conceito que me inseriu no feminismo negro e me fez pensar muito mais em transformação a longo prazo. Como eu olho para a sociedade e como, às vezes, a gente precisa dar um passo atrás quando fala desse tipo de realidade, que muitas vezes a gente não passa. Ele foi importante para eu ter um olhar cuidadoso e para me inserir nesses estudos, que sem o feminismo negro, não conseguiria falar sobre elas. Também para entendê-las mais porque a minha proposta foi me retirar para ouvir mais. Eu acredito que eu ainda preciso de muito mais leitura sobre interseccionalidade, né? Para entender melhor esse conceito, para ir além dele simplesmente como categoria analítica, categorias temáticas de identidades. Como ficou muito nesse lugar de cuidado, de como trazer esses assuntos como relevantes de serem discutidos, da violência e do racismo que elas sofrem, da questão da maturidade, sem reduzir isso a questões simples. É também um óculos que eu passei a usar de como olhar para esse objeto de uma forma cuidadosa. Acredito que eu atingi um lugar ético de observação, que coloco na minha conclusão, essa minha localização, as minhas interseccionalidades. Elas podem ter influenciado para um olhar mais restrito, não tão de dentro no caso das vivências mais diversas e que seria melhor a gente ter. É interessante a gente ter outros olhares também para esse espaço.
Compós: Você traz a questão de como lidar com o anonimato, a ética de estar dentro desses grupos, de analisar as mensagens no Telegram. Quais foram os desafios?
Daniela: Foram muitos. A primeira coisa é que eram muita mensagens, foram três meses olhando um grupo como o “Não inviabilize”, por exemplo, com milhões de mensagens. Então fazer isso de forma manual foi bastante trabalhoso. E aí a questão era, segundo a comunicação como experiência estética, também pensar nesses lugares seguros de partilha. Eu justifico que uma apresentação minha nesses grupos poderia influenciar o conforto delas. Essa foi uma escolha que eu fui buscar fundamentação para me retirar desse lugar, não fazer interações para poder observar com naturalidade como elas levam essas experiências no tempo. Só que aí eu estava olhando questões sensíveis, então fui buscar metodologias de pesquisa no ambiente digital, pesquisas na internet que indicavam que nesses grupos não é necessário ter uma autorização. Procurando um guia, um direcionamento ético na pesquisa, eles indicavam a questão de anonimizar esses resultados e não indicar quem são esses usuários. Nomes, trechos completos, prints… Eu entendia que não contribuiria para pesquisa em si. Fiz de uma maneira que esses dados não ficassem salvos em nenhum lugar e fui fazendo à mão, em um diário de campo, trechos de mensagens que poderiam me ajudar a criar, sintetizar aquela ideia num tema, numa palavra-chave… Ir anotando as partes que eu achava relevante. E a partir desse olhar, encontrar as tendências que apareciam. Bom, tem muita mulher aqui falando sobre dificuldades de ser mãe, ser mãe na adversidade. Aí eu buscava como sintetizar isso “ah, maternidade ou maternidade na adversidade?”. Ia criando sistemas para evitar usar essas mensagens que me ajudou a mapear, usando o mapa das mediações do Orozco Gómes, uma forma de visualizar tudo isso porque eram muitos dados. O máximo que eu fiz foram alguns trechos, entre aspas, que não facilitariam identificar essas pessoas, ou com uma palavra só que reforçasse aquilo que eu estava dizendo. E quando eu colocava, por exemplo, do envolvimento nesses grupos, principalmente das ouvintes, apareciam muito as palavras “mulher”, “raça”, “muito obrigada”. Como então eu ia tirando disso essas relações? Elas também se sentem acolhidas a ponto de agradecer por esse conteúdo, agradecer a partilha de outros ouvintes. Muitos termos como “sinto muito” de pessoas se compadecendo pela experiência do outro. O mesmo eu fiz no “ Afetos” e no “Não inviabilize”. Eu já achei palavras do tipo “história”, que mais aparecia e se trata do podcast de histórias, por conta do grupo que era diferente. Tinha menos partilhas sensíveis, de diálogo direto entre ouvintes e muito mais foco em falar das histórias, mas deixando claro também que eles estão falando sobre si, focando mais nos episódios trazidos. Então esse cuidado foi pensando em “não posso tratar isso como um objeto, tratar essas pessoas como um objeto que estou analisando e vou elucidar tudo”. Aprender como se dão essas dinâmicas, entender como potentes elas são, já era suficiente para mim, sem ter que colocar palavra por palavra das pessoas, sem expô-las, então o anonimato foi acertado nesse sentido de resguardar a ética da pesquisa, considerando que eu estava olhando uma outra interseccionalidade, outros marcadores sociais.
Compós: Quais foram os principais achados sobre essa construção de vínculos e comunidades afetivas entre os ouvintes?
Daniela: O “Afetos” foi o que mais rendeu no olhar para relações afetivas no grupo, de envolvimento. Eu concluí que elas criavam um espaço seguro de discussão, que é um conceito da Patrícia Hill Collins que fala de termos espaços para mulheres negras, exclusivamente para que pudessem falar sobre seus problemas, suas questões, para serem ouvidas. E apesar de não serem só mulheres negras, eu entendia que aquele espaço era esse lugar seguro para discussão. Porque o teor das mensagens traziam questões muito íntimas, muito sensíveis. Quando se tratava de racismo, de relações com homens, em específico em relações heterossexuais, os problemas que elas enfrentavam… Isso foi um grande achado, de perceber que elas criavam esse espaço seguro, uma comunidade afetiva, efetivamente, em que existiam essas trocas. O interesse entre usuários, o envolvimento desses usuários com os podcasts, com os episódios. Eu trago também um autor que fala de reconhecimento, que eles iam para o lugar de um reconhecimento mútuo, em que eles não estão só percebendo a si mesmos, mas a diferença entre si, o que me faz diferente do outro, se reconhecer no outro e se transformar junto com o outro. Eu acredito que foi muito especial para todos os ouvintes. Uma pena elas terem encerrado, mas a gente entende também por conta desse relacionamento afetivo com elas. Foi um lugar muito acolhedor, importante para que as pessoas se sentissem parte de algo e se sentissem, às vezes, à vontade para falar e não tinham outros espaços. Agora o “Não inviabilize” já tinha muito mais pessoas, a restrição de envio de mensagens, tinham que ter relação com os episóidos, precisavam ter uma hashtag específica… A interação entre usuários ouvintes era muito menor, então ali não se criava esse ambiente, uma comunidade afetiva em si, era uma comunidade de fãs. Poucas vezes você via assim pessoas que se dispunham a falar da experiência do outro para tentar ajudar. Ainda que existissem muitas pessoas “me disponibilizo para ajudar juridicamente com essa questão”, “me coloque em contato com a personagem dessa história”… Mas o que acontecia era os ouvintes falando das experiências de si comparadas às histórias que eles ouviam. Então o diálogo era menos presente. E o que eu percebi mais foi mesmo esse reconhecimento do que te faz diferente. É sobre pensar a si mesmo, dentro dessas questões da história, que às vezes fazia repensar “ah, você colocou dessa forma e agora comecei a repensar aquilo que eu passei também”. Mas por conta, acredito que por vários fatores, do funcionamento do podcast, de funcionamento do grupo, era um espaço interessante de diálogo com a produtora, mas não tão aberto ao diálogo e à transformação entre os ouvintes de uma forma mais sensível. Você falou dos resultados, né? Teve esse sentido e também de perceber pelos temas o que acontecia que elas se sentiam incluídas, né? Logo que eu observei no “Afetos”, mas o “Não inviabilize” trazia também, questões como mulher, família, racismo, a questão do corpo… Os ouvintes às vezes estavam nos dois lugares, os temas eram muito parecidos, apesar dos formatos diferentes. Mas existia essa diferença de quão transformadoras eram as experiências de cada grupo, que eram mais do “Afetos” do que do “Não inviabilize”.
Compós: Muito obrigada pela entrevista, pelo seu tempo e disponibilidade! Agora eu deixo o espaço aberto para você.
Daniela: Ah, foi uma pesquisa que me transformou de verdade. O meu interesse hoje por esses temas tem a ver muito com esse espaço que eu tive de contato. Foi muito gostoso poder estudar algo que eu já me sentia afetada, esse lugar de pesquisador que também é fã é muito interessante, apesar das limitações. Mostrar como realmente pensei, em cada etapa que poderia ter se pensado no mestrado, a comunicação… Desde como essas produtoras haviam vivido, suas formações, como elas se posicionavam em rede, como se referiam aos seus próprios podcasts e como se referiam aos ouvintes, até olhar para os ouvintes e ver como eles tratavam aquilo que escutavam, as produtoras, como levavam para a vida as conversas. “Ah, me senti transformado por isso”, “obrigada pelos esclarecimentos”, “me senti acolhida”. Então essa pesquisa foi difícil, foi trabalhosa, mas foi também um abraço. Fiquei muito feliz com o resultado e eu agradeço muito que tenha sido também reconhecido com o prêmio e agora reconhecida pelos pares. Com essa visibilidade que teve, me sinto mais incentivada para continuar a pensar nesses formatos, né? A gente aprende a ser pesquisador no mestrado e agora no doutorado eu já estou seguindo um pouco nessa linha das coisas que eu apontava, por exemplo, a quantidade de pesquisas que se tem sobre podcasts de gênero, podcasts de raça. É como se fosse um degrau após o outro. Essa pesquisa me impulsionou. Eu fico feliz desse espaço, de poder falar com você de novo, poder participar de novo da Compós. Ansiosa para ver, como é que vai ser e para continuar também, mais a fundo, nessas questões, como a intersectualidade agora no doutorado.
Você pode ler a dissertação vencedora na íntegra, acessando este link.