Compós entrevista: Maíra Menezes Gondim, menção honrosa de dissertação do Prêmio Compós 2024

A Compós entrevistou Maíra Menezes Gondim, mestra em Informação e Comunicação em Saúde (Fiocruz), graduada em Comunicação Social – Jornalismo (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), e autora da dissertação que recebeu a menção honrosa do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2024. Sua pesquisa, intitulada Ciência na televisão durante a pandemia de covid-19: análise da cobertura sobre as vacinas em Fantástico e Domingo Espetacular, investiga como os dois programas abordaram a ciência e as vacinas durante a pandemia, destacando as diferenças na construção discursiva da ciência e considerando o contexto de polarização política e desinformação.


Compós:  Como você recebeu a notícia da menção honrosa? E quais foram os impactos desse reconhecimento na sua pesquisa, vida profissional e pessoal?

Maíra Menezes Gondim: Fiquei muito feliz, muito mesmo. Primeiro fiquei surpresa quando o programa me indicou e aí depois a Compós selecionou os finalistas e recebi a menção honrosa. Então fiquei muito feliz mesmo. Um reconhecimento de um trabalho acadêmico que, para mim, foi uma experiência muito nova, porque eu já tenho bastante tempo de atuação profissional no jornalismo, na imprensa e depois na comunicação da Fiocruz. E a experiência acadêmica foi uma novidade e muito desafiador desenvolver esse olhar sobre a minha própria prática profissional. Foi muito enriquecedor também observar o papel da comunicação na pandemia, observar como o jornalismo e a ciência interagem e o que isso representa. E aí o reconhecimento da Compós coroa isso de uma forma linda que me deixou muito honrada. O impacto que isso teve para mim foi de me estimular para continuar na pesquisa. Eu continuo trabalhando e pretendo seguir para o doutorado, e isso reforçou a ideia de me dedicar ainda mais à pesquisa.


Compós: A sua pesquisa não é só da época da pandemia mas também sobre a pandemia. Como nasceu a motivação para estudar as vacinas, a ciência e a postura jornalística?

Maíra: O meu projeto já começou na pandemia, né? Com distanciamento social, todo mundo em casa, trabalhando… Na assessoria de imprensa da Fiocruz, eu observei muito do jornalismo também porque a gente estava em casa e ficava assistindo televisão, ouvindo notícia, lendo, tentando saber onde a gente ia chegar naquele momento de total incerteza. Isso chamou minha atenção, no primeiro momento, para a questão da incerteza científica. Como é que se comunicava a ciência? Que ficava em constante transformação e grande parte do conhecimento não existia. Era um desafio como profissional comunicar isso e, pensando num projeto acadêmico, como é que o jornalismo divulga uma ciência que ainda não tem as suas conclusões, que está em construção? Só que dentro do mestrado esse olhar foi muito refinado, como eu te falei, eu não tinha experiência acadêmica. Então, com o estudo de autores da Comunicação e da Saúde, a área de enfoque da minha dissertação, dentro do meu programa de pós-graduação, das relações, da construção de sentidos… O olhar foi mudando um pouco e ao mesmo tempo a questão das vacinas ganhou muito relevo nesse período. Qual tema a gente pode analisar para observar essa relação entre jornalismo e ciência? A gente fala das vacinas, mas diferente de várias pesquisas que discutem muito essa questão em si. A gente está olhando para a ciência, como que a ciência está aparecendo na cobertura das vacinas. A vacina foi questão central ali naquele ano e uma questão também que mobilizava não só o jornalismo, mas a sociedade. E aí a gente pode falar de rede social, de desinformação… A vacina mobilizava muito os discursos. A gente até analisou vários temas antes de decidir por esse e todos eles, em algum momento, se você fosse falar de tratamento, o próprio distanciamento social, eles nunca ficaram restritos à ciência, quase nada. Eu acho que nada ficou restrito a um campo só. Eram temas que a ciência tinha a sua fala, mas vários outros atores tinham as suas faltas. Então a vacina com esse destaque que teve, ainda atraindo sentidos no Brasil, muito importantes na nossa história de vacinação… A gente falou “isso é um tema interessante pra gente ver essa ciência em construção no contexto da pandemia”. E não foi uma decisão só minha, foi em parceria com a minha orientadora, Janine Cardoso. Numa sociedade que hoje é muito mais polifônica do que já foi, o jornalismo é uma voz… Quando a gente escolheu o objeto televisão, a cobertura televisiva, ela teve muito destaque em um certo momento da pandemia, de um distanciamento social muito intenso, quando as pessoas ficaram realmente dentro de casa. E depois, isso até em termos de audiência, não se manteve, voltou ao que era antes. Hoje em dia, compete com todas as outras mídias que a gente tem, né? Não tem o destaque que teve no passado, mas é uma voz que a gente achou que cabia olhar.


Compós: Sobre a polarização política e a desinformação, que são dois temas que aparecem na sua dissertação, como influenciaram a sua abordagem de pesquisa?

Maíra: A pesquisa foi pensada tendo isso como um pano de fundo. Existe uma interação do jornalismo com um contexto, né? Sempre existe. A gente fala não só de polarização política, mas de ascensão da extrema direita e do momento que o Brasil vivia, que era o governo Jair Bolsonaro, que tinha um posicionamento muito específico em relação a esses temas e que era, talvez na maior parte, contrário ao da ciência, aos consensos científicos. E a desinformação, que não está dissociada disso, não é a desinformação do tema das vacinas. Algumas pesquisas mostram que ela foi fortemente associada ao bolsonarismo nas redes, mas que não está restrita a isso. O anti-vacina existe antes disso, embora ele não tivesse a mesma atenção no Brasil. Mas ele tem outras questões, com a relação da sociedade com a ciência, com as próprias vacinas, com o modelo econômico da produção, enfim. Não é que a escolha desse objeto tenha sido motivada por esses temas, porque talvez eu fosse estudar a desinformação nas redes sobre as vacinas… Nessa hora a gente escolheu pensar o jornalismo, né? E como que ele está destruindo e produzindo sentidos sobre a ciência nesse momento? Isso é uma questão muito relevante porque é muito diferente do que o jornalismo fez historicamente. Em termos de, por exemplo, a gente vê o “Fantástico”, um programa que eu analisei e que é muito estudado, né? Por ser um programa muito antigo, da maior emissora de TV do Brasil, com a maior audiência, um dos poucos programas que dá um destaque para a ciência. Ele é muito estudado nesse tema de divulgação científica, mas não é isso que a gente vê nessas pesquisas que a gente vai olhar para trás. Mas que nesse contexto, dessa cobertura, foi feito de uma outra forma, porque havia uma oposição com o governo, e aí se reforça a nossa ideia de que a nossa metodologia parta de analisar os programas, que é o “Fantástico” e o “Domingo Espetacular”. Porque quando a gente parte de uma análise da semiologia dos discursos sociais, a gente tem essa questão de dois discursos para que um atue como revelador do outro. No contexto que a gente estava vivendo, a gente teve a oportunidade de analisar dois programas que se posicionavam de formas muito diferentes em relação ao governo Jair Bolsonaro. A Globo como uma emissora que, diversas pesquisas mostram, não só a nossa, atuou contrária aos posicionamentos de Jair Bolsonaro na pandemia e sofreu ataques… E a Record, como uma emissora mais favorável ao governo. Ali no começo da pandemia, ao vivo, o Jair Bolsonaro concede uma entrevista exclusiva ao “Domingo Espetacular”… Mostra uma relação muito diferente com esse governo. E isso foi um ponto que a gente considerou na hora de construir a pesquisa, analisar esses programas, esses discursos e observar como que isso influenciava nessa postura, nessa abordagem jornalística, na construção de sentidos sobre a ciência.


Compós: Sobre os resultados, quais os dados você considera mais surpreendentes ou interessantes entre as duas coberturas?

Maíra: Acho que um dos pontos mais interessantes se relaciona com o que a gente está falando desse contexto político… Porque a primeira coisa que a gente observa é que as duas coberturas são favoráveis às vacinas e aí isso se traduz na forma como as vacinas são apresentadas. Nenhum dos dois programas falou contrariamente, em nenhum momento. “A vacina é aquilo que vai acabar com a pandemia”. A gente está falando que a Record era uma emissora que estava mais próxima do governo Jair Bolsonaro, mas ela não divulgou, mesmo nessa parte da cobertura que a gente acompanhou, falas dele contrárias à vacina, isso não teve espaço naquela cobertura. Existe uma diferença muito grande na forma como essas coberturas se desenvolvem e como a ciência acaba sendo construída. No “Domingo Espetacular”, o apagamento de conflitos, sobretudo esse conflito político, não só não aparece o posicionamento contrário do Bolsonaro, como não é dito que existiu um posicionamento. Situações em que você tem troca de acusações entre autoridades, no próprio momento em que começa a aplicação da vacina, a oposição dos cientistas à postura do governo não aparece… Enquanto isso, é muito marcado na cobertura do “Fantástico”, com repetição às vezes, de expressões que a gente olha “ao contrário do que afirmam o governo, o presidente, o ministro da saúde”. Por exemplo, uma apresentação intensa de falas de cientistas em oposição às falas do governo com muita clareza. A gente vê que é um discurso apresentado como da ciência, de cientistas. E aí eles também apresentam vários, não é UM cientista que se opõe, construindo essa oposição e essa situação de conflito entre a ciência e o governo. Isso se relaciona também com a própria forma como a pandemia aparece nos dois programas, muito mais dramática no “Fantástico” do que no “Domingo Espetacular”, que, em muitos momentos, opta por não citar o cenário de quantas mortes estavam acontecendo. A gente observa a diferença ao longo do tempo, a gente fez uma análise caracterizando fases dessa cobertura… Não são fases da pandemia, são fases da cobertura pela forma como essa história sobre o desenvolvimento das vacinas é contada. E aí a gente vê que, no primeiro momento, assim que começa o isolamento social, a vacina já aparece. O distanciamento social começa, a vacina está muito no seu princípio de pesquisa, mas já está sendo pesquisada e já está na cobertura. São diversos projetos, ninguém sabe o que vai dar certo. No “Domingo Espetacular” é uma cobertura pautada na esperança. Aparece muito a esperança e a ideia de que a pandemia pode acabar logo. Essa esperança logo no começo entra em oposição a um cenário muito dramático lá no final, quando a vacina é aprovada e o Brasil está numa das suas piores crises em termos de mortes. Não aparece no primeiro momento da cobertura, quando a doença está chegando no Brasil e o mundo está parado, e aparece com muita dramaticidade. E no “Fantástico” é muito diferente. Porque os questionamentos sobre o processo de desenvolvimento da vacina, a necessidade de garantir a segurança, a eficácia estão muito mais presentes no “Fantástico” nas primeiras fases da cobertura, que mostra muita ciência e entrevistas, muitos cientistas. O “Fantástico” tem um jornalista científico que é responsável pela maior parte das matérias e que detalha muito o processo científico de desenvolvimento dos imunizantes, que traz muitas vozes de cientistas que questionam a aceleração das pesquisas e defendem uma necessidade do cumprimento de todos os ritos para garantir a segurança e a eficácia das vacinas. É a característica da cobertura do “Fantástico”, que se aproxima muito dos cientistas e que entra nesses detalhes, tanto por mostrar esses conflitos políticos quanto por abordar os próprios desafios científicos. Mostra como a ciência não se dá só dentro do laboratório, existem fatores fora desse ambiente que fazem parte da ciência. Isso constrói essa imagem distinta do que aparece na Record, que é uma imagem de uma ciência quase sem conflitos que depende do empenho dos cientistas para conseguir chegar no resultado. E aí quando chega na parte final, no momento da aprovação das vacinas, o “Fantástico” salienta muito que as vacinas aprovadas são seguras, são eficazes porque elas seguiram os ritos. Tem uma ênfase no processo dos ritos da Anvisa, de aprovação. Enquanto que no “Domingo Espetacular”, isso aparece de uma maneira mais simplificada e sem ênfase.


Compós: Quais lições você acredita que os veículos de comunicação podem tirar da sua pesquisa para melhorar a cobertura de temas científicos?

Maíra: Existem sim muitas formas possíveis de cobrir a ciência, né? A pandemia deixou isso muito claro e a ciência não se dá só dentro do laboratório ou no campo ou na atividade do cientista. A ciência participa da sociedade e a sociedade de alguma forma participa da ciência. Então tem uma via de mão dupla entre a ciência e a sociedade, e o jornalismo está aí fazendo circular os enunciados da ciência e também levando para os cientistas os enunciados da sociedade. Interagindo diretamente, perguntando, questionando. A gente está aqui para desenvolver um raciocínio um pouco além de um momento de muita evidência da ciência, do jornalismo e, ao mesmo tempo, um momento de muito questionamento da ciência e do jornalismo. Não é possível seguir com as atividades nessas duas áreas sem considerar esse contexto. É uma sociedade que, talvez, tenham alguns grupos que esses discursos circulam, questionam a autoridade científica, a autoridade jornalística. Não como uma autoridade que determina coisas, política ou governamental, mas como uma autoridade no seu campo de expertise. A gente tem, por exemplo, duas coberturas que foram favoráveis à ciência e ao jornalismo, mas uma cobertura que evidenciou pelo menos alguns desses conflitos e que também mostrou o fazer científico como algo que não segue uma linha reta entre vou fazer uma pesquisa, cheguei num resultado. Tem várias questões no meio, decisões que precisam ser tomadas. E uma outra cobertura que reforce um pouco essa visão da ciência como uma prática que tem menos percalço. E aí a gente pode pensar, por um lado, a cobertura do “Fantástico”, por enfatizar muito essa oposição com o governo Bolsonaro pode ter afastado as pessoas que se posicionam desse lado do campo político e social, né? E a cobertura do “Domingo Espectacular” pode, de uma forma melhor, ter chegado nessas pessoas para dizer, “olha, a vacina é positiva”. Por outro lado, quando você tem uma cobertura que mostra todos esses percalços, você pode ver a ciência um pouco mais como ela é feita. Será que se não se constrói uma credibilidade mais duradoura? São questões complexas. Até que ponto uma cobertura que abre para essa complexidade permite as pessoas compreenderem esse processo? E talvez lidarem com esse contexto, né? Então eu não sei se tem uma lição, mas acho que tem uma reflexão. Como falar de ciência na televisão? Tem também aí um outro lado, de questões que ficam apagadas nas duas coberturas. Por exemplo, a questão da equidade no acesso às vacinas, o próprio papel do SUS. A gente está falando de desenvolvimento de vacinas que, no Brasil, quem traz essas tecnologias das primeiras vacinas abordadas pela nossa pesquisa é a Fiocruz e Instituto Butantan. A gente está falando de uma vacina que vai ser distribuída na rede pública do SUS. Então também tem uma reflexão sobre a comunicação da saúde e num país que a gente precisa considerar isso.


Compós: Muito obrigada pela sua participação, por ter reservado um tempo para a nossa conversa.  Deixo o espaço aberto para você.

Maíra: Eu queria fazer um agradecimento primeiro de tudo à minha orientadora, Janine Cardoso, que foi uma grande parceira e professora. A Janine foi muito generosa na orientação, não só em compartilhar o conhecimento, em discutir a pesquisa, mas em assistir vídeos! Pra poder conversar sobre aquilo. Então é uma generosidade de tempo, a pesquisa de televisão exige um tempo muito grande. Foi incrível o quanto eu aprendi. À minha banca da qualificação e da defesa, foram duas professoras que contribuíram demais com a pesquisa, a professora Kátia Lerner, do ICICT, a professora Simone Kropf, da Casa de Oswaldo Cruz. Um agradecimento especial ao meu programa de pós-graduação, PPGICS. Eu queria fazer uma homenagem ao Igor Sacramento, que era o coordenador do programa, que faleceu recentemente. Foi uma grande perda para todos nós da Fiocruz e para Comunicação, né? Foi um coordenador muito dedicado no momento da pandemia, muito presente para que esse curso pudesse ser feito. Para que o curso alcançasse uma excelência nesse contexto, além de um pesquisador sensacional e que eu tinha esperança de um dia vir a interagir mais. Tem alguns artigos dele que são referência da minha dissertação. E um agradecimento pessoal à minha família, meu marido e meu filho, à minha mãe. Quando eu comecei o mestrado, meu filho tinha 2 para 3 anos, muito pequeno e foi um desafio nesse aspecto. Então eu precisei de muito apoio familiar. Eu tive também o privilégio de, como eu sou servidora, fazer essa dissertação com um salário digno e de contar, na Fiocruz, com a infraestrutura que deu também o suporte, tem uma creche onde o meu filho ficava… Então esse suporte foi fundamental para conseguir chegar lá. Esse suporte institucional é muito importante para as mulheres quando elas estão nesse ambiente, para a questão da maternidade, então um agradecimento também para o meu setor, o Instituto Oswaldo Cruz. Vou agradecer em especial à minha chefe, Raquel Aguiar, coordenando o nosso departamento e que é doutora em Comunicação. Eu sinto que foi uma grande estimuladora de seguir esse caminho, para buscar um caminho na pesquisa. E obrigada mesmo pelas perguntas, te agradeço muito, foram ótimas.

Você pode ler a dissertação vencedora na íntegra, acessando este link.