Compós entrevista: Naiara Silva Evangelo, menção honrosa do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela de 2023

Hoje, continuamos a série de entrevistas com os vencedores do Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023. A nossa terceira conversa é com Naiara Silva Evangelo, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGcom/Uerj), mestre em Comunicação pelo mesmo programa e graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Naiara atuou como pesquisadora do laboratório de Comunicação, Entretenimento e Cognição (CiberCog) e tem entre seus temas de interesse de pesquisa as relações étnico-raciais, vigilância e cultura digital.

A sua tese, intitulada “A experiência negra de ranqueamento social na Uber: uma reflexão racializada da vigilância contemporânea”, foi indicada pelo PPGCOM/Uerj aos prêmios Intercom e Capes de Teses, e recebeu a menção honrosa na categoria melhor tese no Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023. Naiara foi orientada pela Prof.ª Dr.ª Fátima Regis.

Compós: Essa é a pergunta que eu tenho feito para todos os vencedores do prêmio do ano passado. O que significou na sua vida, seja na sua carreira acadêmica ou profissional, ter recebido a menção honrosa de melhor tese Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2023?

Naiara: Olha, se eu pudesse botar em uma palavra, com certeza é reconhecimento. É reconhecimento do trabalho que não é só do doutorado, né? É o trabalho de educação de uma vida inteira, que começa desde o ensino básico até o doutorado. E para mim tem um significado muito especial de ser o Prêmio Compós porque a minha tese de doutorado nasceu de um artigo que eu escrevi para a Compós quando eu estava no mestrado. No meu primeiro ano do mestrado, eu estava fazendo uma dissertação sobre outro assunto completamente diferente. Eu conhecia a Compós obviamente, mas era, enfim, é uma das organizações mais prestigiadas dentro da Comunicação. E eu falei “Bom, eu gostaria muito de participar”, mas aí me disseram “Olha, complicadíssimo, Naiara, você é mestranda, é difícil”. Mas eu falei “Queridos, desculpe, mas eu vou tentar”. E aí eu estava assistindo ou começando a assistir Black Mirror, que é uma série que eu gosto muito, tinha visto um episódio, o “Nosedive”, fiquei muito mexida com aquela lógica de ranqueamento social, que era uma coisa que ainda não estava tão difundido na nossa sociedade… Na mesma época, eu tinha visto umas matérias sobre os motoristas avaliarem os passageiros da Uber e eu fui olhar minha nota, eu falei “Gente, minha nota é 4.80 e pouco, por que que eu tenho essa nota?” E aí eu fiz essa associação, conversei com meu orientador de mestrado na época, o Robson, e ele falou “Vamos escrever esse artigo pra Compós? Tá querendo ir para Compós? Vamos escrever esse artigo!”. A gente escreveu o artigo, mandamos e o artigo foi aceito. Aí eu falei “Viu, gente, foi aceito. Significa que alguma coisa aí tem de interessante”. Ia ser um artigo para apresentar na Compós e seguir a minha vida, só que no dia que eu apresentei esse trabalho, foi no segundo dia do evento à tarde, então eu já tinha participado do primeiro dia, já tinha visto toda a movimentação. De repente, na hora que eu fui apresentar, a sala estava muito cheia e eu falei “Gente, tem aí uma coisa que despertou o interesse das pessoas, eu vou continuar com esse assunto”. Então, esse trabalho acabou virando a minha tese de doutorado por causa da movimentação da Compós: primeiro pelo aceite e segundo por ter despertado naqueles pesquisadores ali, que têm muito conhecimento, um interesse e deles dizerem que aquilo tinha um valor para a Comunicação. Então assim, começar isso dentro da Compós e terminar com essa menção honrosa de tese dentro da Compós é muito significativo, porque eu ganhei um prêmio. Quem premiou não tinha nem ideia desse processo, não tem a menor ideia de que isso aconteceu, então foi uma coincidência muito feliz. Me sinto reconhecida pela Compós duas vezes, em dois momentos, no começo e no fim. É uma alegria, uma satisfação. A trajetória é muito difícil, é muito complicado você estudar a tecnologia com recorte racial é muito, muito, muito difícil. Hoje em dia, a gente consegue encontrar diálogo, a própria Compós agora tem um grupo de recorte étnico-racial, antes não tinha. Então assim, agora tem a possibilidade de diálogo e realmente é um reconhecimento de um trabalho que tem a trajetória dentro da Compós.

Compós: Sua pesquisa é sobre raça e sobre tecnologia, que, como você mesma comentou, era algo não muito comum na academia. Você já nos contou um pouco de onde veio esse tema e então nós queremos saber quais são os principais desafios de estudar raça e tecnologia hoje? O que você consegue identificar como mais difícil ou complexo ao pesquisar esse tema?

Naiara: Olha, primeiro é que agora a gente está num cenário melhor, mas em 2019, quando eu decidi introduzir o recorte racial com Simone Browne, que foi a pesquisadora que me fez entender que eu precisava ter esse recorte racial, quando eu assisti uma palestra dela na UFBA… Ela tem um livro que chama Dark Matters, que ela transforma o panóptico como referência, onde os navios negreiros viram referência de vigilância, então desloca, né, o panóptico para os navios negreiros… E aquilo mexeu muito comigo. É a negritude que é referência de vigilância desde sempre. E essas nossas referências precisam ser outras e aí me deu esse start que eu precisava olhar para a tecnologia com um olhar racial. Então, o primeiro desafio voltando para sua pergunta, era não ter bibliografia lida primeiramente em português. Não tinha em português, então eu tive que fazer uma busca em inglês. Não tinha com quem dialogar sobre isso. Eu fui buscar pesquisadores fora da minha universidade e foi muito bom me sentir acolhida. Não tinha grupos de pesquisas em congressos, então a gente tem que ficar entrando em espaços e ir hackeando mesmo para poder falar. E aí, você não tinha onde publicar, né? Agora tem. Que bom que o processo aconteceu de um jeito mais imediato do que eu imaginava que fosse acontecer. A gente está longe de estar numa solução, tá? Mas definitivamente o cenário está melhorando… O simples fato dos trabalhos premiados da Compós nesse ano terem algum recorte minoritário significa que a gente está tendo um olhar e possibilidade de diálogo, de holofote e luz. Alguns desafios são esses e é difícil, mas eu acho que para todo mundo que está fazendo isso do zero, que está começando, alguém vai ter que fazer, né? Então vamos que vamos, e vamos nos juntando aí no processo e os grupos vão se formando, e a gente vai mudando esse cenário.

Compós: Você fala que a sua metodologia parte da cartografia e que a escolha disso vem de uma oportunidade de experimentação, da flexibilidade na coleta e da possibilidade de uma pesquisa-intervenção. Como foi esse processo de trabalhar essa metodologia na sua pesquisa?


Naiara: Então, eu tinha vindo, no mestrado, da etnografia. Etnografia, como sabemos, tem regras muito rígidas e se você não se compromete com essas regras, você não é cientista. Então, eu falei “Ok, não é etnografia. Vamos procurar uma metodologia que eu possa experimentar”. Porque eu tenho um objeto que é o Uber, eu vou conversar com motoristas dentro de um carro, eu vou aplicar questionários, eu vou falar em grupos de Facebook, eu vou entrar em grupo de WhatsApp… Do nada aconteceu uma pandemia, no meio do processo… Assim, era muita coisa, eu fui pegar dados de empresa… Não dava para ser etnografia. E o avanço de metodologia de dados ainda não estava lá, hoje em dia talvez eu tivesse outras metodologias, mas naquele período ali (2019, 2020), a cartografia era a metodologia que me proporcionava mais ferramentas e eu ainda acredito nela como recurso para ser científico. Porque, além disso, você que é pesquisador e preto, o seu trabalho, o seu rigor científico precisa estar intacto, senão as pessoas questionam. Então eu falei “Bom, na cartografia eu vou estar 100% dentro da regra”, e eu escolhi a cartografia justamente por essa possibilidade de flexibilidade, por dar conta de uma pesquisa complexa, que não era uma pesquisa que seria tão óbvia… Era uma pesquisa off, uma pesquisa online, uma pesquisa com entrevista, uma pesquisa de dados, é quase uma pesquisa multimétodos, né? A cartografia me dá uma possibilidade de, dentro de uma metodologia, ser multimétodos. Então, pra mim foi muito bom para estar dentro do jogo e eu fiquei muito feliz por ser uma coisa que a banca elogiou. As críticas que eu levei na etnografia, fui elogiada na cartografia, então funcionou, deu certo. A multiplicidade que a cartografia te dá é justamente essa, quando você está estudando tecnologia, hoje em dia, exige também inovação e a metodologia precisa acompanhar, então a cartografia te dá essa possibilidade.


Compós: Você comenta que a sua tese é feita com um arcabouço teórico racializado. Isso é super importante para as pesquisas por ter uma diversidade de referências, pra gente não ficar sempre citando os mesmos autores norte-americanos, europeus… E também para basear o que a gente está falando, como a gente está olhando para o nosso objeto, a partir desse recorte que é racializado. Como você encara esse posicionamento? O quanto enriqueceu a sua pesquisa?

Naiara: Olha, essa é uma escolha política mesmo, sabe? É no sentido de dizer “Não dá mais para pensar sem nós”. E aí pensar sem nós é também pensar intelectualmente. Então, se eu estou pensando, eu quero pensar com os meus, eu não quero só pensar com os europeus, eu quero pensar com os meus. E aí são os meus brasileiros, são os meus latino-americanos, são os meus estadunidenses, são os meus até europeus que nasceram na África e foram pra Europa por algum motivo, mas que somos afro diaspóricos. Estamos aí na luta, né? Ninguém vai mais pensar por nós, então é uma escolha política. Ciência, se não for política, pra mim, não é ciência. Porque a ciência já decidiu muita coisa no mundo, inclusive o conceito de raça, que disse que pessoas eram inferiores, que disse que pessoas eram menos, que dizimou um povo, né? Que dizimou, que matou, que gerou o genocídio, que gera até hoje. Então, para combater o genocídio, o extermínio, a gente tem que fazer política na ciência. Pensar com autores negros… Isso é muito difícil, tá? É muito trabalhoso, é exaustivo… Ganhar um prêmio, eu dei graças a Deus, mas é muito difícil, o processo é muito complicado… Escrever na pandemia, então, é muito complicado. Então assim, é uma escolha política porque não dá para eu sair de um doutorado, uma vida inteira de estudo, sem deixar meu recado, sabe? Não dá mais para entrar numa universidade e não ver os meus pensando, dando aula, ocupando as cadeiras, fazendo ciência. Agora a gente vai fazer o movimento inverso. Então foi uma escolha política mesmo, jogando dentro das regras do jogo, é do jeito que tem que ser. Era o legado que eu podia deixar. Foi o que eu podia fazer dentro do que a gente pode fazer, que é uma tese, é o que a gente pode deixar como pesquisador.

Compós: Fazer a tese dessa forma e ao mesmo tempo ser premiada por ela é uma forma de inspirar e dar um novo norte para que mais pesquisadores tomem esse tipo de posicionamento?

Naiara: Olha, eu espero que sim. Eu espero que inspire, sim, porque o fato de não ter na minha época, ou ter tido pouquíssimas referências e colegas estudando temas racializados, foi difícil. Tanto que o que me fez decidir pelo recorte racial foi ter tido uma inspiração. O que me fez falar assim “Eu vou estudar tecnologia com recorde de raça” foi escutar uma pesquisadora que estudava raça. Então, se eu me inspirei em alguém, eu espero que alguém possa se inspirar em mim. Se uma pessoa se inspirar em mim, já é alguma coisa. E se alguém se inspirar nessa pessoa que se inspirar em mim, já é alguma coisa. E a gente vai fazendo em rede, indiretamente, é o “Sozinho a gente vai mais rápido e junto a gente vai mais longe”, sabe?

Compós: Nos seus resultados você demonstra que nesse objeto de pesquisa em específico, mas também no geral, a tecnologia reforça o racismo, os estereótipos negativos sobre as pessoas negras, a criminalização das pessoas negras… Depois de ter finalizado a sua pesquisa, você consegue observar ou vislumbrar um caminho para contornar esse viés que está tão arraigado nas tecnologias que são tão presentes no nosso cotidiano?

Naiara: Olha, sinceramente, ainda não. Por quê? Porque ainda está no âmbito das empresas privadas. Enquanto não tiver regulamentação séria, estatal, não vejo perspectiva, sinceramente. Eu vou falar dois cenários, tá? Na pesquisa de doutorado, eu olhei só para a experiência dos usuários… Eu tentei dar uma observada, entender um pouco, mas era mais para o olhar dos usuários. Depois que eu acabei a pesquisa, eu fui fazer uma reportagem para o The Intercept. Eu não tinha defendido a tese ainda, mas eu já tinha acabado e aí eu fui entrevistar a Uber, foi a primeira vez que eu fui conversar com a Uber. E aí eu entendi que a empresa de fato não tem uma política de mudança estrutural. Tem um discurso de relações públicas, de publicidade, de imagem… Se depender de empresas privadas, a gente não vai ter uma mudança de fato, e a gente precisa de mudanças que venham do Estado, de políticas públicas, de regulamentação, de leis, a gente precisa de política. Então, assim, hoje em dia ainda não enxergo, não mesmo. Mas a gente tem que conversar, a gente tem que falar sobre… Eu acho que tem a questão do trabalho, né? Se a gente entrar nessa questão, aprofunda ainda mais a precarização do trabalho e aí tem um recorte racial que é bem problemático. Quando eu já estava na reta final da pesquisa eu fui conversar com alguns motoristas, você vê que a precarização deles, muitos negros, que eles alugam o carro para trabalhar. Então eles já começam a trabalhar endividados e ainda sofrem essas micro violências no contexto do trabalho. É uma precarização da precarização. É um contexto muito complicado. E aí não tem uma regularização do estado. Eu sou zero otimista. Nesse sentido, continua no mesmo lugar, nada mudou nesse meio tempo.


Compós: No quarto capítulo, antes das considerações finais, você fala sobre a precarização do trabalho nesse contexto que a gente está vivendo e do rompimento de imaginários e a construção de novas subjetividades. Eu queria pegar essa frase e trazer para o campo da Comunicação. Você acabou de falar que não consegue vislumbrar um caminho, quando a gente está olhando para a tecnologia e raça, mas partindo do olhar da Comunicação, você acha que os comunicadores conseguem fazer alguma coisa? Qual é o papel dos comunicadores nesse cenário?

Naiara: Nesse lugar da subjetividade, eu já tenho essa perspectiva fora do contexto da Uber, que aí impacta no cotidiano. Porque o meu olhar é: o que acontece dentro da corrida da Uber é o que acontece no dia a dia. Aquela nota ali que vai no ranqueamento é o dia a dia. Então como você rompe com a micro violência do dia a dia, daquela nota, daquele sistema de precarização todo? Como você rompe com as micro violências de todo o dia? Você criar novas referências, você pensar em novas subjetividades. E a comunicação é o maior canhão para você construir novas subjetividades. Para mim não existe outro caminho. Na verdade, eu acredito em dois caminhos juntos. A comunicação e a educação. Mas é pensando que a educação no Brasil, infelizmente, ainda é um lugar de privilégio e que a comunicação acessa muita gente, tem um poder massivo muito grande e tem que entender a sua responsabilidade nesse lugar. Então, quando a gente vê no Brasil telenovelas, o próprio jornalismo trazendo comentaristas e jornalistas pretos, em revistas, influenciadores, a ciência, pesquisadores, enfim… Todo mundo que tem o poder de comunicação com outro olhar, eu acredito como uma possibilidade. Mas assim, precisa ser com consciência também, com crítica. Não adianta ser só o lugar ocupado, sem ser pensado, não é ocupar por ocupar, também não adianta. Mas eu acho que a comunicação é um grande canhão de possibilidade de alteração de subjetividade. E a gente já vive isso no Brasil muito claramente, a gente já enxerga essa mudança no país. Acho que falta ampliação crítica nisso, mas eu acho que está em curso, que está sendo falado cada vez mais sobre isso. Mas aí é sempre um jogo do avanço e do retrocesso, do avanço e do retrocesso… Vou dar um exemplo muito claro: agora as pessoas usam o racismo estrutural como eufemismo pro racismo. “Agora eu cometi racismo estrutural”, não, querido, você teve um ato racista e o racismo é crime. Então assim, é sempre distorcendo, esvaziando. Sabe, é muito difícil, a gente tem que ficar o tempo todo vigilante, mas você vê que o assunto está em pauta. As pessoas estão vigilantes, estão atentas, as coisas estão acontecendo. A gente só precisa estar atento, tomar cuidado para não se perder, mas eu realmente acredito no potencial da comunicação, sempre acompanhada da educação. E sempre que puder trabalhar educação e comunicação juntos, eu vou fazer. É aqui dito que não tem saída para a mudança no Brasil, para a população, para a democracia, que não seja esse.

Compós: Nós queremos agradecer pela sua generosidade de participar, pela sua disponibilidade de estar aqui hoje e por ter um trabalho tão importante que contribui com outros tantos trabalhos. E se você sentiu falta de abordar algum assunto, deixo esse espaço aberto.


Naiara: Não, eu acho que é isso mesmo. Foi muito bom falar de novo sobre a minha tese, ver que ainda tem interesse… Eu não estou mais trabalhando com ela especificamente e eu quero voltar, quero transformar em livro, fazer essas coisas todas, mas a vida é muito corrida… E é bom saber que ainda tem interesse, que as pessoas ainda se interessam por ela de alguma forma. E eu estou sempre à disposição, Compós conte comigo para tudo! Porque nem sei o que seria de mim, eu não seria doutora se não fosse aquele artigo, aceito em 2017 eu acho, eu sou eternamente grata e estou sempre à disposição.

Acesse este link e leia a tese de Naiara Silva Evangelo na íntegra.